Entrevista com o Padre Aníbal Castelhano
Publicada no Correio de Coimbra, na semana que antecedeu o Dia Cáritas (11 de Março)
A Caritas de Coimbra toma a seu cargo a dinamização da acção social da Igreja na diocese. Que actividades concretas desenvolve?
Não é inteiramente correcto que a Cáritas de Coimbra tome a seu cargo a dinamização da acção social da Igreja na diocese. A Cáritas é um serviço da Diocese e do seu Bispo, os verdadeiros dinamizadores de toda a acção pastoral. Por outro lado, há imensa acção social na diocese (Misericórdias, Centros paroquiais, Associações de fiéis, Institutos religiosos, IPSS) que ultrapassa o âmbito da actuação imediata da Cáritas. Neste complexo estrutural, a missão da Cáritas ainda não foi claramente definida.
De qualquer modo, são inerentes à identidade da Cáritas quatro grandes acções: ser o veículo facilitador da ajuda assistencial que a Igreja diocesana dá a pessoas muito pobres ou em situações de vida particularmente graves; sensibilizar e catequizar toda a igreja de Deus para a acção social e caritativa; responder com a maior qualidade possível aos problemas sociais graves (ex.: desemprego, prostituição, sem-abrigo, minorias étnicas, crianças em risco…); promover as comunidades, assumidas como entidades globais e culturais. Intervimos em todas estas áreas. Em relação às comunidades, tentamos responder às solicitações concretas que nos são feitas e simultaneamente exercemos uma acção, relativamente intensa e próxima, na formação de grupos paroquiais e na formação técnica para a acção: prevenção da toxicodependência, alcoolismo, educação afectivo-sexual, idosos e doentes, migrantes, doutrina social da Igreja… Depois há todo o universo de equipamentos de acção social e outros tipos de respostas, como o acompanhamento de mais de 300 casos de Rendimento Social de Inserção no Concelho de Coimbra.
Que infra-estruturas tem a Caritas diocesana neste momento?
Primeiro, temos a sede, com a valência família, comunidade e população activa, para além dos múltiplos serviços de apoio. Depois, na área da Infância: 3 creches, 3 jardins de Infância, 1 Centro de Acolhimento Temporário, mais de 3 dezenas de centros de A.T.L.; na área da juventude: 2 lares, um masculino e outro feminino, para crianças e jovens desprovidos de meio familiar normal; na área da toxicodependência: 1 comunidade terapêutica, 1 Centro de Dia, 1 Apartamento de Reinserção, 1 Equipa de Rua); na área das mulheres em risco: atendimento próprio, actividades de formação e Empresa de Inserção Azul e Branco. Contamos abrir muito em breve um Centro de Acolhimento, residencial, neste âmbito; na área da doença e dependência: Lar, Unidade de Longa Duração e Manutenção (integrada na Rede Nacional de Cuidados Continuados), clínica de fisioterapia; na área dos sem-abrigo: um Centro de Acolhimento, o Farol; na área do HIV-SIDA, apoio (alimentação, apoio jurídico, cuidados de saúde…) a 50 doentes socialmente desenraizados… Esperamos que em breve o Farol possa acolher residencialmente 14 doentes, para o que está devidamente equipado; na área dos Idosos: 4 lares, vários Centros de Dia, de Apoio Domiciliário e de Convívio; na área dos Bairros urbanos: Centro Comunitário no Bairro da Rosa, com uma incidência muito grande sobre a população cigana, Centro Comunitário no bairro do Ingote… Enfim, estou certíssimo de que neste rol alguma me passou ao lado…
Note que cada uma destas unidades é um mundo que escapa a este enunciado. Veja a distância que vai entre dizer “quatro lares de idosos”, ou perceber um só desses Lares, como o de Buarcos, com 106 utentes… Depois, há ainda parcerias que se estendem a muitos outros níveis. O melhor exemplo será o CEARTE, que é um centro de formação profissional completamente autónomo, mas que nasceu de um protocolo entre a Cáritas de Coimbra e o Instituto de Emprego e Formação Profissional, e que nos tem dado sempre um grande apoio na formação destas populações mais desfavorecidas.
Assumiu a presidência da Caritas há cerca de dois anos. A dimensão desta estrutura não o assusta?
Um ano e dois meses. Não sei se “assustar” é o termo certo. É motivo, com certeza, de extrema e contínua atenção, nem tanto pela dimensão, mas sobretudo por alguns sectores estruturais que, por motivos diversos, estão neste momento sob forte fragilidade, nomeadamente todo o sector de A.T.L., por razões políticas conhecidas e os equipamentos que não têm comparticipação dos utentes (como os sem-abrigo e outros) que são estruturas caras e economicamente muito deficitárias. Uma coisa é absolutamente clara. A Cáritas não é a estrutura rica que se julga. Pelo contrário, está a viver tempos difíceis, com uma gestão bastante apertada, como aliás acontece com muitas outras IPSS.
Ao nível local e paroquial existem muitos organismos que trabalham na área social. Que tipo de acompanhamento é feito pela Caritas a estes grupos?
Depende da sua natureza e também da sua abertura. Quando digo “da sua natureza”, é porque nós entendemos que a Cáritas é credora imediata de apoio para os grupos que comprometem “oficialmente” a Igreja paroquial, já que a Cáritas é ela própria assumida pela Igreja como “instância oficial” (C.E.P.). Mas a Cáritas não trabalha especificamente com grupos e organismos, mas com as comunidades. Não há grupos/organismos paroquiais “da Cáritas”. Logo também não há grupos paroquiais fora do âmbito do apoio da Cáritas. O nosso âmbito de acção são as 266 paróquias da diocese. Ao nível de Misericórdias e IPSS não temos um “plano de acompanhamento” nem até ao momento ninguém nos incumbiu de ter. Temos um bom diálogo, sobretudo na concertação de respostas imediatas para situações concretas. Temos também algumas propostas formativas de âmbito diocesano, normalmente aproveitadas pelas mesmas. E, pontualmente, apoiamos em coisas simples, como formação técnica mais localizada, embora sempre em contexto comunitário.
Com as Conferências Vicentinas estabelecemos basicamente as mesmas propostas que para os Grupos Sociocaritativos: são convidadas para as acções desenvolvidas nas comunidades, têm acesso aos Temas de Reflexão que produzimos para os grupos, tentamos auxiliá-las nos seus casos mais problemáticos, por exemplo em encaminhamentos…, elas próprias nos socorrem em muitos casos que nos são apresentados, por exemplo de ajuda material imediata, ou nalguns serviços de voluntariado, como agora, na cidade de Coimbra, o peditório de rua para a Cáritas.
De qualquer modo, numa diocese tão grande e tão diversa, as situações são muito plurais, às vezes até dentro da mesma paróquia.
As paróquias da nossa diocese são activas na resposta aos problemas sociais actuais?
Diria que estão sobretudo numa fase de sensibilização para a dimensão pastoral dos problemas sociais de que já nos podemos orgulhar, sendo largamente reconhecido o longo e insistente trabalho do Pe. António Sousa nesta sensibilização. Estão também – muito mais do que aquilo que às vezes se pensa – bastante disponíveis para a organização pastoral da mesma. O grande número e qualidade dos Centros Paroquiais de Solidariedade Social e de Grupos Sociocaritativos atesta esta sensibilidade e esta capacidade. Mas faltam às comunidades, do meu ponto de vista, instrumentos de mediação comunitária, instâncias concretas, com “espírito”, recursos económicos e capacidade técnica, para agirem eficazmente e a sua acção ser reconhecida na comunidade como “mediação” da acção da Igreja. Muitas das paróquias são extremamente pobres de recursos humanos e materiais, o que dificulta a organização de uma acção tão exigente. A partilha de bens para a caridade, em muitas comunidades, continua arredada da Eucaristia, e logo do coração da vida cristã… O desconhecimento dos problemas (sabe quantos deficientes há na sua paróquia?) acaba por legitimar muitas vezes o adiamento das respostas necessárias.
Muitos párocos da diocese têm a seu cargo centros sociais, ainda que, muitas vezes não tenham formação na área. Esta falta de preparação é um problema?
Penso que pode ser uma dificuldade acrescida, embora não um problema absoluto. A qualificação que as comunidades lhes podem legitimamente exigir é na animação da vida da comunidade crente à luz do Evangelho. Se nós, padres, conseguirmos isto, teremos mais facilidade em despertar as sinergias comunitárias adequadas à gestão dos centros sociais. Mas continuam a persistir três tipos de dificuldades: a das comunidades onde efectivamente não há alternativas com mais “formação na área” do que o próprio padre!; a do “carisma” do padre, i. é, tudo aquilo que do interior do padre o aproxima ou afasta da função de “gestão”, mesmo que tenha uma boa formação neste campo; o da disponibilidade de tempo ou, se quisermos, o do papel que efectivamente cabe ao pároco enquanto ministro sagrado.
O voluntariado é outra área também promovida pela Caritas. Que importância tem esta vertente da acção social nos nossos dias?
Tem toda a importância, embora precise de ser tecnicamente muito bem enquadrado. A Cáritas tem promovido essencialmente dois tipos de voluntariado (sem considerarmos a acção local dos Grupos): o Voluntariado Hospitalar e o voluntariado concreto em projectos muito bem definidos (por exemplo, nas equipas de rua). Nos equipamentos, por razões técnicas e jurídicas, é mais difícil. Há um campo onde me parece que podemos potenciar o voluntariado e é minha vontade que isso aconteça, que é no apoio directo às paróquias, em animação pastoral e formação preventiva para os problemas sociais graves.
A Vértice é um movimento juvenil ligado à Caritas. De que forma são envolvidos os jovens na acção social?
A Vértice não é um “movimento”, mas uma “associação”. Tem um estatuto sobretudo jurídico. Neste momento, mesmo como Associação, não está nas prioridades do nosso envolvimento. A questão está em saber se a sua existência formal facilita a integração dos jovens na acção social da paróquia, ou dificulta essa integração, criando um “organismo à parte”. A nossa ideia é que os jovens devem estar integrados na acção social a partir dos próprios dinamismos da comunidade paroquial: o seu Grupo de Acção Social, o seu Centro Social, a Conferência Vicentina… Se eu, como presidente da Cáritas, vou a uma comunidade paroquial falar da dimensão pastoral da caridade e não me aparece nenhum jovem da Vértice, porque estão ao lado a falar de ecologia, há aqui qualquer coisa que não bate certo. É esta a questão que estamos a reflectir. Isto não quer dizer que não haja núcleos da Vértice, assumidos como tal, e com uma intervenção na comunidade muito válida, nomeadamente junto de idosos, junto de outros jovens, na promoção de iniciativas desportivas e culturais… A questão é de integração e não de acção.
Outro aspecto diferente é o trabalho que a Cáritas faz com jovens, que já fazia antes da Vértice e continuará a fazer, e que é sempre em dois campos: na formação para a intervenção na comunidade e na formação relativamente a problemas de natureza marcadamente juvenil, como as drogas, a sexualidade e outros. Sabe que na Cáritas há técnicos que trabalham exclusivamente em formação de jovens nestas problemáticas, tanto nas escolas como nas comunidades? Atingimos hoje (nestes últimos três ou quatro anos) mais jovens do que nunca – não meras centenas, mas milhares!
De resto, os jovens integram-se na acção social como os adultos.
Que balanço faz deste tempo à frente da Caritas diocesana?
De uma coisa fui tomando uma consciência cada vez mais inabalável: a acção sociocaritativa é intrínseca à natureza da Igreja. Por isso a Igreja tem que a assumir, na sua pastoral concreta, como uma exigência absoluta da sua missão. A Cáritas está empenhada em fazer crescer esta acção na diocese, não como “coisa sua”, mas como serviço ao bem comum eclesial e social. A Cáritas há-de ser um projecto e uma concretização da igreja diocesana, o que não é fácil. Respeitando estes princípios, o fazer concreto é relativo. Por isso fiz e quero continuar a fazer um exercício de reflexão com muitas outras pessoas, clero e leigos, sobre o lugar da Cáritas na Diocese. A feliz coincidência da publicação da Encíclica “Deus caritas est”, neste período, foi também um factor potenciador desta reflexão.
E para o futuro, quais as prioridades que assume?
A animação pastoral das comunidades é sempre uma prioridade. É preciso criar na igreja, a todos os seus níveis, uma mentalidade para a pastoral da caridade e apostar inequivocamente na formação de agentes para esta acção.
Uma segunda prioridade é a da formação do próprio corpo de profissionais da Cáritas, em ordem às duas exigências enunciadas por Bento XVI: competência técnica exigente e formação do coração sólida, a que acresce a mais valia do enriquecimento pessoal e do “dar alma” às valências.
A terceira prioridade tem a ver com o reforço, criação ou reestruturação de algumas respostas em equipamento, nomeadamente no âmbito das mulheres em risco, das crianças e dos idosos, sem ignorar outras necessidades em estudo.
Deixe uma resposta
Tem de iniciar a sessão para publicar um comentário.