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Instrução pastoral do Episcopado sobre ação social da Igreja

INSTRUÇÃO PASTORAL DO EPISCOPADO

SOBRE A ACÇÃO SOCIAL DA IGREJA

 

 

INTRODUÇÃO

 

1.  Já diversas vezes nos pronunciámos sobre questões sociais da vida portuguesa[i]. Nesta Instrução Pastoral desejamos falar especi­ficamente da acção social da Igreja, entendendo por ela o conjunto de actividades realizadas no âmbito da justiça e da caridade (cfr. JM 35 e GS 69) por imperativo da própria natureza da Igreja.

Esta acção vai acontecendo através das comunidades cristãs, seus serviços, instituições e grupos, com a finalidade de contribuir para a prevenção e solução dos problemas e situações que afectam a vida das pessoas e para a recta e justa ordenação da sociedade (cfr. GS 39 e AA 5-7). Trata-se de um agir eficaz em ordem à edificação do Reino de Deus, contribuindo para a “melhor ordenação da socie­dade humana” (cfr. GS 39), a partir da comunidade cristã, radicada no Evangelho, e tendo como modelo a vida trinitária de Deus.

É muito significativo o número de instituições e grupos ecle­siais que diariamente acolhem dezenas de milhares de pessoas. Importa que haja melhor articulação no conjunto desta acção social. A celebração do Grande Jubileu do Ano 2000, segundo a carta apos­tólica Tertio Millennio Adveniente (TMA), oferece-nos a ocasião opor­tuna para, nesta matéria, traçar algumas linhas de acção à luz dos prin­cípios teológico-pastorais da Igreja.

Lembrando e seguindo, a propósito, a parábola do bom samari­tano em todo o seu desenvolvimento, partimos da análise sumária da realidade social portuguesa, para recordarmos, em seguida, os fun­damentos e princípios orientadores da acção social da Igreja, e con­cluirmos interpelando as comunidades cristãs, em geral, e cada cris­tão, em particular, a intensificarem os seus esforços e compromissos nesta tão importante área pastoral.




1. ALGUNS ASPECTOS DA SITUAÇÃO ACTUAL

 

(E quem é o meu próximo? Lc 10, 29)



Motivos de preocupação

 

2.  A realidade social portuguesa é composta de fenómenos so­ciais altamente contrastantes. Coexistem, na verdade, a defesa dos direitos humanos e a persistência de injustiças, marginalizações e até aforamentos de racismo e xenofobia. Ao mesmo tempo que se pro­cessa o desenvolvimento educacional e tecnológico, abundam proble­mas escolares e laborais, e sobretudo ressaltam casos de pobreza extrema.

Vivem lado a lado — até nas mesmas pessoas — as concepções da sociedade pós-laboral, «sem trabalho», e a obsessão idolátrica do trabalho, que destrói a família e desumaniza as relações interpessoais. Habitam, paredes meias, os beneficiários de remunerações muito altas e as vítimas de baixos salários, aliás sem razões válidas que expli­quem tais desigualdades. Proclama-se a exigência de qualificações profissionais, mas as empresas e o Estado não facilitam, de maneira satisfatória, a admissão de jovens qualificados, nem os remuneram convenientemente.

Vem-se assistindo a um surto positivo das ciências sociais; todavia, o seu contributo para o desenvolvimento da pessoa humana não tem acompanhado esse ritmo, verificando-se não raro que elas próprias se vinculam aos objectivos das empresas e outras organiza­ções, com notório prejuízo de quem nelas trabalha.


3.   Uma segunda dimensão da realidade social — que uma leitu­ra cristã não pode descurar — é a cultura e a prática da dependên­cia, verificadas em todos os segmentos da sociedade portuguesa. Tra­ta-se de um fenómeno secular, agravado significativamente após a integração de Portugal na União Europeia.

Subsidiam-se empresas e trabalhadores, pessoas ricas e pobres, o fomento e extinção de postos de trabalho, actividades lucrativas e não lucrativas, oscilações do mercado e pressões de grupos sociais organizados ou não de maneira corporativa. Muitos destes grupos —que às vezes se encontram entre os mais poderosos — procuram extrair vantagens máximas do Estado, incluindo a segurança social.

A cultura e a prática da dependência traz consigo não só a atrofia do espírito de iniciativa e da dignidade humana, mas tam­bém o agravamento da injustiça social. É que os recursos finan­ceiros são insuficientes, e, não raro, marginalizam quem mais preci­sa. É significativo o que ocorre no meio rural e no sector agrícola. As “gentes do campo” surgem, na opinião pública dominante, como destinatárias de grandes somas de subsídios comunitários, visando até a não produção, quando, na realidade, uma grande percentagem nun­ca teve acesso a qualquer ajuda.

Aliás, muitas das situações sócio-familiares mais graves são totalmente ignoradas, devido a uma verdadeira ocultação estatís­tica. De facto, não se dispõe de informação estatística sobre situa­ções de pobreza[ii] extrema, como se verifica nos casos de crianças abandonadas, de famílias monoparentais, de famílias de reclusos e de toxicodependentes, da violência na família, dos sem abrigo… Até há pouco não existia informação válida sobre pessoas deficientes, e a informação agora disponível não identifica determinadas situações-

-limite como a das pessoas deficientes, físicas ou mentais, sem famí­lia e entregues a si próprias.

Os gravíssimos casos de grande dependência — por motivo de doença, deficiência, idade muito avançada ou acidente — acham-se silenciados não só no plano da informação, mas também no das medidas de política social.


4. Os contrastes sociais e a cultura da dependência relacionam-se com uma terceira coordenada da leitura cristã da realidade social, a qual consiste na irresponsabilidade individual e colectiva peran­te os problemas sociais.

Não falta quem se sinta no direito ilimitado de receber benefícios públicos e de se dispensar das contribuições e impostos para o Estado e para a segurança social. O clima de venalidade atrofia a solidariedade na sociedade civil, sob o pretexto de que incumbe ao Estado a solução de todos os problemas sociais. As próprias instituições e grupos de acção social da Igreja — cujo mérito justifica todo o nosso apreço — podem ceder à tentação de se preocuparem, predominantemente, consi­go próprias e com os seus utentes, ficando pouco disponíveis para outros que não beneficiam de qualquer apoio social.

Aliás, a insensibilidade perante a população mais vulnerável vai-se verificando em largos sectores da sociedade portuguesa, e, de modo particular, nos órgãos de soberania, na administração pública, nos par­tidos políticos, nos parceiros sociais e noutras instituições que pare­cem desconhecer a população pobre, não abrangida por medidas nem por serviços sociais, para se concentrarem na melhoria do financia­mento e de outras condições dos actuais beneficiários.


Actuações que se impõem


5. Em simultâneo com os motivos de preocupação acabados de enumerar, verifica-se, no País, uma capacidade invulgar de assunção e superação de dificuldades. Tanto o Estado como as di­ferentes instituições e, em especial, as famílias e os particulares têm revelado, ao longo dos anos, uma notória vitalidade, na procura de soluções para os problemas com que se debatem.

Desde a estabilidade política e socioeconómica, passando pela taxa de desemprego relativamente controlada, até à manutenção e melhoria, nalguns aspectos, da protecção social e do sistema educa­tivo, tudo isto — apesar de inúmeras limitações e injustiças — denota um dinamismo que importa registar.

É certo que as preocupações de natureza económica afectam a grande maioria das famílias e dos cidadãos. Certo é também que as aspirações parecem crescer a um ritmo superior às oportunidades. E, em consequência de tais preocupações e ambições, verifica-se uma agitação permanente em torno de objectivos que atrofiam o sen­tido da existência autenticamente humana.

Surgem, ao mesmo tempo, inquietações profundas acerca da na­tureza humana e do futuro da humanidade. Há que assumir estas ten­dências mais profundas e contribuir activamente para a clarificação do sentido da vida humana e para a melhoria das condições de vida.


6. Nesta perspectiva, impõe-se que as actuações a desenvol­ver se ocupem directamente dos casos de pobreza e exclusão, sem descurarem a prevenção de tais situações, mediante esforços de desenvolvimento e de transformação social.

Na pobreza e exclusão sobressaem, a par dos baixos rendimen­tos, os múltiplos problemas de emprego, habitação, saúde e educa­ção. Num outro piano, surgem com identidade própria as graves ques­tões relacionadas com a família: famílias mono-parentais, orfandade, desagregação, violência e falta de equipamentos e serviços sociais adequados em quantidade e qualidade. Esta falta é particularmente notória em relação às crianças, às pessoas com deficiência e aos cha­mados “grandes dependentes”, idosos ou não.

Um terceiro plano de pobreza e exclusão social diz respeito ao alcoolismo, à toxicodependência e à prostituição, cuja gravidade se centra não só nas diferentes situações registadas em todo o País, mas também naquilo que elas indiciam: falta de projectos de vida e de res­postas adequadas. A mesma carência se observa em relação às pes­soas afectadas pela sida.

Outro plano de questões sociais, de índole sociocultural, diz res­peito aos imigrantes, aos grupos culturais (ou étnicos) específicos e, bem assim, aos emigrantes.

Verifica-se também neste domínio a falta de sentido da vida para muitos jovens, o isolamento e solidão de idosos, a exclusão inerente ao “abandono e insucesso” escolares, bem como a burocracia, espe­cialmente nos domínios da saúde e da segurança social.


7. Não podemos ignorar que os problemas vividos no nosso País se inscrevem num quadro mundial marcado por injustiças e desigualdades inadmissíveis. Ainda recentemente, o Conselho Pon­tifício “Cor Unum”[iii] chamou a atenção para a fome e a subnutrição no mundo, e acentuou a necessidade de uma “economia mais solidá­ria” e do empenhamento de todos os povos.

Neste quadro alargado, há que fomentar a acção social da Igre­ja, em estreita cooperação com os povos mais afectados pelas carên­cias económicas e sociais, designadamente com os países africanos de língua oficial portuguesa e com Timor-Leste.

A mundialização e a globalização da economia, a difusão de cor­rentes neoliberais, a inovação tecnológica permanente e o desrespei­to pelos valores ecológicos arrastam consigo uma competitividade desenfreada.



II.    FUNDAMENTOS DA ACÇAO SOCIAL DA IGREJA

 

(Certo samaritano viu-o e encheu-se de amor Lc 10,33)


O homem, caminho da Igreja


8. A Igreja reconhece e respeita a legítima autonomia das reali­dades terrestres (GS 36), mas não pode deixar de as analisar e nelas agir à luz da fé. Não prescinde do conhecimento objectivo da reali­dade, para o assumir na perspectiva salvífica.

De facto, a Igreja preocupa-se com a pessoa humana, como ser concreto e situado na história, não só a partir da relação temporal co­mum que se forma entre pessoas, grupos e instituições, mas também a partir da comunhão fundamental que se estabelece entre Deus e cada pessoa: o homem é um ser criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26), companheiro fraterno de Jesus, realização dos dons e ca­rismas com que o Espírito Santo alimenta o processo de construção do Reino de Deus.

O homem é, assim, o primeiro e fundamental caminho da Igreja (cfr. RH 14; ChL 36). 

Por isso, observa João Paulo II: “descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo, em certo sentido, a tarefa central e unifica­dora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, é chamada a pres­tar à família dos homens” (ChL 37).

Se a fé cristã radica expressamente nos mistérios da Encarnação e da Redenção, só a partir deles ganha o homem pleno significado: o Deus que nos redime em Jesus Cristo assumiu a história dos homens, a fim de os libertar de todas as prisões e conduzir à plenitude da vida.


Igreja pobre e com os pobres


9. Radica aqui, de resto, a opção preferencial da Igreja pelos pobres. Se a pobreza, na sua expressão de miséria, indigência e mar­ginalização, é sempre um atentado à dignidade humana, os pobres têm que encontrar eco prioritário no coração da Igreja. Se analisarmos os textos da Bíblia, descobrimos esta predilecção na própria pessoa de Deus-Pai[iv].

Sempre que está em causa o oprimido, o espoliado, o injustiçado —  e, tipicamente, o órfão, o estrangeiro e a viúva —, os profetas que Deus suscita entre o seu povo não temem colocar a justiça e a equi­dade à frente do próprio culto, como o sacrifício que é agradável a Deus. É oportuno lembrar também — às portas do Grande Jubileu do Ano 2000[v] — a instituição dos “anos jubilares”, como tempos de alegria para todo o povo, por uma certa reposição da ordem inicial de posse comum dos bens materiais e da liberdade (cfr. Lv 25,10).

Em Jesus Cristo este amor de Deus pelos pobres ganha toda a sua densidade em dois momentos singulares: o “empobrecimento” de Jesus Cristo que, sendo Deus, se despojou da sua dignidade divi­na e se fez homem (cfr. El 2, 5-8); o “enriquecimento” dos pobres, que são dignificados na Segunda Pessoa da Trindade, conforme o re­lato de Mateus. Aí Jesus não diz: cada vez que fizestes [ou deixastes de fazer] isto a um dos meus irmãos mais pequeninos foi como se o tivésseis feito a Mim. Diz, sim: “foi a Mim que o fizestes” [ou dei­xastes de fazer] (cfr. Mt 25, 40.50). Reparemos, todavia, que neste “despojamento” do Filho se dá a plenitude da presença e acção do Espírito Santo.

Não pode a Igreja pretender agir de outra forma, pensar de outra maneira: como Cristo será uma Igreja pobre — “despojada” — mais segura da presença operativa do Espírito do que dos bens mate­riais; e, como o Espírito actuante em Jesus, será uma Igreja com os pobres. E isto por fidelidade à sua missão, por credibilidade do seu testemunho, por mediação sacramental do Reino de Deus na história dos homens — “Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de Paz” (Missal Romano, Prefácio da festa de Cristo Rei).


Amar o homem, promovendo a justiça

 

10. Ao colocar-se diante da pobreza nas suas diversas manifes­tações, partindo da dignidade da pessoa humana, a Igreja não pode eximir-se a tirar conclusões da sua própria convicção doutrinária: Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para uso de todos os homens e povos, de modo que os bens criados devem chegar equita­tivamente às mãos de todos, segundo a justiça, inseparável da cari­dade” (GS 69). É necessário afirmá-lo: se os bens da terra estão distri­buídos tão desequilibradamente, é porque aí se introduziu a injustiça.

Por isso — como disseram inequivocamente os Bispos reunidos no Sínodo sobre a Justiça no Mundo, já em 1971 — a missão que a Igreja recebeu de Cristo de pregar a mensagem evangélica “compor­ta a vocação do homem para se converter do pecado ao amor do Pai e à fraternidade universal e, por consequência, à exigência da justi­ça no mundo” (JM 37). O núcleo fundamental da mensagem cristã — a universal paternidade amorosa de Deus, a fraternidade universal dos homens redimidos no mesmo Senhor Jesus Cristo e a oferta univer­sal de salvação escatológica para que o Espírito nos vivifica, na diversidade dos seus dons e carismas — entrecruza-se assim com o compromisso concreto do crente e da comunidade cristã, em ordem à libertação integral do homem, já desde agora, na sua existência terrena (JM 36). Mais concisamente, “o amor ao homem — e em pri­meiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo — concretiza-se na promoção da justiça” (CA 58)[vi].


Anúncio e denúncia

 

11. Compreende-se que o amor preferencial da Igreja pelos po­bres — e as opções concretas que ele implica — deve estar sempre integrado na missão evangelizadora da Igreja. E esta, por sua vez, deverá sempre reflectir-se no compromisso e na acção social dos cris­tãos. De tal modo assim é, que a evangelização permanece sempre como alicerce e elemento unificador da própria doutrina social da Igre­ja (cfr. CA 5). Por isso, mesmo na análise dos problemas da injusti­ça, sem prescindirmos da denúncia, havemos de dar prioridade ao anúncio, conforme também clarifica João Paulo II: “o exercício do ministério da evangelização no campo social, que é um aspecto do múnus profético da Igreja, compreende também a denúncia dos males e das injustiças. Mas convém esclarecer que o anúncio é sem­pre mais importante do que a denúncia; e esta não pode prescindir daquele, que lhe dá a verdadeira solidez e a força da motivação mais alta” (SRS 41).

Aliás, a denúncia bem entendida não se limita a apelar para a causa do injustiçado. Mantém no seu horizonte a conversão do pro­motor da injustiça. Porque a injustiça é sempre fruto do desvio pelo homem e pela humanidade, do plano criacional de Deus, do qual Deus nos tornou co-participantes, conforme a palavra bíblica: “enchei a terra e dominai-a”. E, como desvio contra a vontade de Deus, a injustiça acaba por se revelar também como desvio contra o próprio homem.


Caridade e justiça, ao serviço da pessoa

 

12. Se a pobreza é fruto da injustiça, torna-se inquestionável que toda a acção a favor do pobre tem de ser, antes de mais, uma acção centrada na erradicação da injustiça. Simultaneamente não se pode descurar o trabalho de redignificação pessoal e social daquele que foi vítima da injustiça.

Por isso, é escandalosa a pretensão de exercer a caridade sem promover a justiça e lutar por ela. No dizer do Concílio, não se pode “dar como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça” (AA 8); mas também a luta pela justiça é inseparável da caridade, que a integra e sublima (cfr. JM 35). De resto, dado o primado da caridade na acção social da Igreja, bem deveremos encontrar aqui a eficácia mais alta da acção da Igreja no mundo.


13. João Paulo II, partindo do imperativo de que “a caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça” (ChL 42), integra, consequentemente, a acção política (cfr. ChL 42), a vida económico-social (cfr. ChL 43) e a cultura (cfr. ChL 44) no âmago da acção social cristã, cujo centro, destinatário e protagonista último é a pessoa humana (cfr. GS 25 e 63; ChL 43). E, na carta encíclica Centesimus Annus, acrescenta que o amor preferencial da Igreja pelos pobres se estende às formas de pobreza cultural e religiosa (cfr. CA 57).

De resto, a conexão entre estas realidades é de tal modo estreita que, não só não é razoável pretender agir num dos campos, ignoran­do liminarmente os outros, como havemos de reconhecer que a esfe­ra da acção social da Igreja ultrapassa o âmbito da pobreza e mesmo dos problemas sociais graves, em si mesmos, e — sem os descurar — terá também que intervir nos domínios da prevenção e promoção, do desenvolvimento[vii], da humanização e da transformação social.

 

Valores e princípios da acção social

 

14. Há que considerar ainda alguns valores e princípios funda­mentais, que a Igreja preza como estruturantes e orientadores quer da sua acção social concreta quer da atitude que assume perante a sociedade humana e suas organizações.

Antes de mais, a solidariedade. Como princípio e virtude da éti­ca dos povos, que brota da responsabilidade comum e universal já referida, ela “tende, à luz da fé, a superar-se a si mesma e a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuitidade total, do per­dão e da reconciliação” (SRS 40).

        Na temática social, a consequência mais imediata do princípio da solidariedade é a relativização do direito de propriedade priva­da (cfr. LE 14) face ao “destino universal dos bens”. Como diz João Paulo II, sobre a propriedade privada pesa “uma hipoteca social” (SRS 42), que atinge especialmente as terras e outros bens produtivos aban­donados.


15. O mesmo “destino universal dos bens” não só relativiza, como universaliza, o direito à propriedade privada: é um direito para todos e não só para alguns! Por outras palavras, “a socialidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos corpos intermédios, desde a família até às organizações económicas, sociais, políticas e culturais, provenientes da própria natureza humana e subordinados sempre ao bem comum da própria autono­mia” (CA 13).

Deste modo, urge afirmar que privar alguém do acesso à proprie­dade privada, que lhe permita essa realização, sobretudo no interior das sociedades com a propriedade fortemente privatizada (cfr. CA 6), atenta directamente contra a vontade de Deus, contra a consciência ética dos povos, que se exprime na solidariedade, e contra o próprio direito de realização social da pessoa humana.


16. Quando consideramos a relação da pessoa humana com a sociedade, temos que atender a três critérios: a prioridade da pessoa humana; o imperativo daquela relação como base de realização pes­soal; e o papel dos diferentes corpos intermédios. A aplicação polí­tico-social efectiva destes três critérios traduz-se no “princípio da subsidiariedade”[viii] . Ao Estado compete essencialmente, por obri­gação positiva e inerente, envidar todos os esforços para possibilitar a participação e a co-responsabilidade das pessoas e corpos intermé­dios, zelando pela igualdade de oportunidades e pela satisfação das necessidades básicas, sempre no respeito pela identidade e autono­mia daqueles, não se substituindo aos mesmos (cfr. QA 79 e 80). É de notar, porém, que o princípio da subsidiariedade é indissociável da solidariedade (cfr. CA 15).

Gratificante é verificarmos que a consciência dos povos se aproxima progressivamente destes valores e princípios fundamen­tais da fé cristã, ainda que às vezes por caminhos diferentes dos da Igreja. A proclamação dos Direitos Fundamentais do Homem constitui como que o vértice e o corolário desta consciência. Acredi­tamo-lo: é uma acção do Espírito de Deus, que sopra onde quer e como quer e que “ilumina o coração de todo o homem que vem a este mundo” (Jo 1,9).

A experiência histórica, todavia, mostra-nos quanto estamos dis­tantes da realização efectiva destes direitos. Em razão da sua missão e em razão daquela mesma solidariedade humana que acima vimos, a Igreja — sem renunciar à sua identidade e sem ferir o respeito pela legítima autonomia das realidades terrestres — quer e deve colaborar, activa e eficazmente, com os homens, as organizações e o Estado, em ordem ao bem “de todos os homens e do homem todo” (PP 14).


III. PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA PASTORAL SOCIAL

 

(Aproximou-se, cuidou das suas chagas,

tirando dois denários, deu-os Lc 10, 34-35)


Primado da pessoa humana e primazia da caridade

 

17. A compreensão que a Igreja tem de Deus, do homem e de si mesma, à luz da própria revelação divina, liga-a à causa social, não só em termos de doutrinação mas também de acção. Por isso, a pas­toral social engloba não só a acção social da Igreja, mas também a respectiva base teológica e o conjunto de orientações e acções complementares.

 

18. Toda a vida da Igreja se resume no “mistério da comu­nhão” com Deus e com os irmãos. Por isso, a pastoral social assen­ta as suas bases no princípio de que “Deus é Amor” (cfr. 1 Jo 4,16) e de que a vida dos homens, entre si e com Deus, deve ser presidida pela caridade. Desta afirmação se destacam os princípios essenciais da pastoral social, distinguindo-a das demais acções no campo social. São eles: o primado da pessoa humana e a primazia da caridade.

A Igreja — consciente de que “a verdadeira vocação do homem é tornar-se cada vez mais homem segundo o desígnio de Deus (…)“ (cfr. PP 15) — procura, através da sua pastoral social, criar condições para que cada pessoa possa desabrochar e encontrar o seu próprio bem, no seio da comunidade humana, onde o Reino de Deus acontece. Disto são exemplo as numerosas acções que a Igreja tem desenvolvido ao longo dos tempos, quer para defender a pessoa humana e os seus interesses legítimos quer para a promover. A Igreja sabe que respei­tar a pessoa humana é respeitar Deus, do qual ela é imagem; querer o seu bem é realizar a vontade fundamental de Deus sobre o homem, o que exige uma noção correcta do ser humano.

Criado por Deus à sua própria imagem, resgatado pelo sangue de Cristo, feito pela graça filho e amigo de Deus, o homem é chama­do a participar da própria vida divina (cfr. 2 Pd 1, 3-4). Vocacionado para se realizar plenamente como pessoa humana, o que significa atin­gir a estatura do “homem novo” à imagem de Jesus Cristo, o cristão recebe “as primícias do Espírito Santo” (cfr. Rm 8,23), que o tornam capaz de viver à maneira de Deus. Por isso, como diz o salmista, “ele é quase um ser divino” (cfr. Si 8,6). E aqui que reside, essencialmen­te, a sua profunda dignidade, a sua grandeza, a sua primazia em rela­ção a todos os outros seres. E é aqui, ainda, que a pastoral social en­contra a sua razão de ser antropocêntrica.

Mais ainda, a caridade tem a sua origem em Deus que é Amor em si mesmo. Ela brota do amor fontal que jorra do seio da Santíssi­ma Trindade e que é derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cfr. Rm 5,5). Ela é, pois, um imperativo do amor divino agindo nos nossos corações, marcados pelo pecado, para nos tornar capazes de “fazer de cada homem um próximo, e de cada próximo um irmão”. Por isso, a caridade cristã — dom do amor de Deus e resposta do homem a esse amor — deve resplandecer e ser cele­brada na vida da Igreja. Deste modo, cada cristão e cada comunida­de cristã deve procurar traduzi-la na vida e empenhar-se, verdadeira­mente, em torná-la visível e operante a favor dos homens do nosso tempo, sobretudo dos mais carecidos: os pobres, os excluídos, os igno­rados e as vítimas de todas as fomes que existem no mundo de hoje.


19. Jesus não só sublinha estes dois primados da pastoral social com a parábola do bom samaritano, como ainda — segundo o mo­delo da intervenção libertadora de Israel do cativeiro do Egipto — pre­cisa os seus elementos constitutivo-metodológicos: ver a realidade humana, amá-la, aproximar-se, agir e partilhar.


Importância da pastoral social

 

20. Tal como a acção profética e a acção litúrgica, é inques­tionável que a pastoral social, enquanto expressão eclesial do amor de Deus aos homens — e também sua mediação e transparência — é absolutamente indispensável à vida da Igreja, aos seus vários ní­veis — internacional, nacional, diocesano, paroquial. Tão indispensá­vel que, sem ela, a Igreja nunca poderia cumprir integralmente a sua missão evangelizadora e até excluiria, da sua esfera de anúncio sal­vífico, um conjunto de pessoas que só pelos sinais concretos do amor mediado pela Igreja poderão ter a percepção do amor de Deus.


21. Isso mesmo o revelam os textos bíblicos quando dizem dos primeiros cristãos que “eram assíduos à oração, ao ensino dos após­tolos e à fracção do pão” (Act 2,42), uma expressão que resume to­das as grandes dimensões da pastoral da Igreja, incluindo a dimen­são social. Por isso: “entre eles não havia pobres” (cfr. Act 2, 42-45). Ou seja, oração, partilha da palavra e do pão, são gestos de comu­nhão com Deus e com os irmãos. São esses gestos que criam comu­nidade e que desenvolvem um modo de vida cujo modelo é o próprio Deus: “comunhão trinitária”. É este o grande objectivo para o qual toda a pastoral deve convergir.


22. É grato aos Bispos de Portugal testemunhar aqui o seu apreço pela actividade altamente meritória que tantas instituições, grupos e cristãos em geral vêm desenvolvendo em todo o País e nos mais diferentes domínios de acção social.

Apesar das limitações inerentes ao estudo empreendido no sen­tido de conhecer a acção social da Igreja em Portugal, ele permite-nos verificar o imenso rasto de amor que permeia a sociedade por­tuguesa, por acção directa de uma pluralidade de pessoas, instituições e grupos que se identificam com a Igreja.[ix] Onde aparecem os diferentes problemas sociais, encontramos a solicitude do povo de Deus, a maior parte das vezes extremamente discreta, mas sempre incisiva, diligente e libertadora, mesmo quando marcada por algumas deficiências.


23. Não podemos deixar de expressar também uma palavra de gratidão — nem sempre manifesta nas comunidades cristãs — para todas aquelas pessoas que assumiram, como compromisso e tes­temunho inolvidável da sua fé a acção nas estruturas do mundo, seja no âmbito profissional seja no voluntariado. Encontramos cris­tãos no mundo sindical, nas iniciativas empresariais que visam a criação de emprego e de riqueza, nas associações de pais, na comu­nicação social, na saúde, na cultura, na investigação, na acção polí­tica e na administração pública, nas associações desportivas, recrea­tivas, culturais, ecológicas…, seja no plano local ou regional, seja no âmbito nacional e internacional.


Agentes e meios da pastoral social

 

24. Na realização da pastoral social, justifica-se realçar dois tipos de agentes: a comunidade cristã e os agentes intermédios.

O agente principal é, sem dúvida, a comunidade cristã. Se a comunidade cristã, enquanto tal, não se envolver de forma partici­pativa e corresponsável na concretização da pastoral social, jamais se passará do patamar das “acções pontuais” para o testemunho de uma Igreja realmente comprometida com Jesus Cristo e, por isso mes­mo, “perita em humanidade” (SRS 41), capaz de tornar visível o Evan­gelho e de construir na caridade o mundo novo da justiça e da santi­dade que é o Reino de Deus. Felizmente, reassumindo a mais pura tradição da Igreja, cresce entre nós a consciência de que a pasto­ral social é uma responsabilidade própria de cada comunidade eclesial, que não pode ser alienada.

Não podemos deixar de considerar também a importância dos agentes concretos, ou seja, cada cristão — pelo baptismo inserido em Cristo e na comunidade eclesial — e os grupos e instituições que, de dentro da própria comunidade cristã, são mandatados para o exercí­cio de tarefas específicas no âmbito da pastoral social. Cabem nesta categoria as diferentes instituições e grupos de acção social da Igre­ja que, com maior ou menor autonomia, cumprem uma função de serviço na comunidade e cujos membros devem primar, diante do mun­do, pelo testemunho evangélico.

Sem esquecer ainda, como já referimos, todos os cristãos em­penhados nas mais diversas tarefas do mundo secular, onde cum­prem a sua missão própria.


25. No que se refere aos meios que tornam possível a actuação da pastoral social, é imprescindível que mencionemos dois: o teste­munho e o serviço.

A fé em Jesus Cristo, vivida e partilhada, conduz inevitavelmente ao testemunho da caridade que os cristãos não podem deixar de tor­nar visível na sua vida. A solidariedade humana, a fraternidade cristã e a partilha dos bens, segundo o seu destino universal, são valores que os cristãos não podem demitir-se de testemunhar, sob pena de um falso entendimento daquilo que comporta a salvação em Jesus Cristo (cfr. GS 39).



IV. ORIENTAÇÕES PASTORAIS

 

(Vai, e faz tu também do mesmo modo Lc 10, 37)


Intensificar a solidariedade organizada


26. Não pode servir o muito que já fazemos para aquietar a nos­sa consciência face ao que ainda falta fazer. Sem pessimismos, importa desenvolver mais esforços, designadamente no que se refere à pastoral social em todas as paróquias.

É desejável que se intensifique a formação permanente do cle­ro e dos leigos nesta área. A formação, o conhecimento da realidade social e a vivência da comunhão deverão conduzir à promoção da caridade com determinação e muita perseverança. Trata-se obviamen­te, de algo que não é fácil, pois que não pode reduzir-se a “actos pon­tuais” de natureza assistencial, mas sim de pôr em prática, todos os dias, as grandes motivações evangélicas que são a solidariedade humana, a transformação social e, daí, a partilha de bens, na linha do seu destino universal, a luta pela justiça e a cooperação no desenvol­vimento integral da pessoa humana.


27. Como já referimos, a pastoral social deverá respeitar cada pessoa como “o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais” (GS 25) e das diferentes actividades realizadas. Daqui decorre o princípio da universalidade a ter sempre em conta. À luz deste princípio, a acção social da Igreja há-de estar aberta a todas as pessoas nas diferentes situações sociais, e responsabilizar todas as comunidades cristãs e cada um dos seus membros, procurando actuar nas manifestações e nas causas dos problemas. Há-de estar aberta fraternalmente à cooperação com todos os povos, designadamente os de língua oficial portuguesa.

O respeito pela pessoa humana, pela família e pelos corpos inter­médios, torna imperiosa a aplicação do princípio da subsidiariedade, já abordado, não entendido como forma de deixar cada pessoa ou gru­po entregue a si próprio, mas sim como expressão de respeito pela sua identidade e autonomia, no quadro de relações basicamente soli­dárias (cfr. CA 15).

Expressões de solidariedade social organizada são as institui­ções e grupos de acção social da Igreja. Neles se deverão reflectir, permanentemente, a partilha e o compromisso social das comunida­des cristãs, muito embora possam celebrar acordos com o Estado e com outras entidades públicas e privadas. Tais acordos, no entanto, nunca poderão significar uma relação de dependência perante o Estado, nem a transferência, para ele, da solicitude da comunidade pelas pessoas, sobretudo as mais pobres.

Não se diga que a acção social da Igreja é subsidiária do papel do Estado, nem que o pagamento dos impostos exonera os cristãos de outras responsabilidades sociais. Bem pelo contrário: a acção social da Igreja radica no seu projecto salvífico, centrado em cada pessoa e baseado na caridade transformadora, inseparável da jus­tiça, da paz e do desenvolvimento solidário.


Actividades múltiplas e a diferentes níveis

 

28. A acção social da Igreja reparte-se por tantas actividades quan­tas as necessárias para se assegurar a responsabilização pessoal e co­lectiva e para se abrangerem os diversos problemas sociopessoais nos seus diferentes aspectos. Assim: um primeiro conjunto de activida­des caracteriza-se pela incidência directa nos problemas e pelo contacto com as pessoas neles envolvidas. Situam-se aqui, em parti­cular: o atendimento social; a visita (no domicílio, no hospital, no es­tabelecimento prisional…); a ajuda e a entreajuda; o contributo para a humanização de relações interpessoais e mais alargadas (designadamente nos serviços e estabelecimentos que se ocupam de problemas sociais); a prestação de serviços diversos (com realce para a distribui­ção de bens e para os serviços e equipamentos sociais); a animação local; o fomento de iniciativas (incluindo o fomento de pequenas em­presas e de actividades formativo-ocupacionais) destinadas a solucio­nar problemas sociais; a participação em processos de desenvolvimen­to, de nível local e mais alargado; a intervenção junto de centros de decisão e da opinião pública, bem como nas diferentes estruturas em que os cristãos actuem por motivos de ordem profissional, política, sindical, patronal, empresarial, sociocultural e associativa.

Um segundo conjunto de actividades reveste-se de carácter interno (no âmbito de grupos, instituições, serviços, comunidades cristãs). Aqui se inscrevem, nomeadamente: a promoção de serviços de acção social da Igreja em todas as comunidades cristãs; o acolhi­mento, nas comunidades, das iniciativas associativas e fundacionais de acção social da Igreja, promovendo a comunhão entre todas; o re­crutamento e formação de agentes; o fomento do espírito de comuni­dade; a espiritualidade específica da pastoral social; a coordenação e dinamização da pastoral social existente ou a desenvolver.

Finalmente, justifica-se assinalar o conjunto de actividades que se podem designar por comuns, caracterizadas por serem de âmbito intra e extra-eclesial. Consideram-se aqui, em especial: a ela­boração e difusão de estudos e reflexões; a realização de colóquios e iniciativas afins, bem como a participação nas promovidas por ou­tras entidades; o fomento da consciência pessoal e colectiva dos pro­blemas sociais e da co-responsabilidade na sua solução; a partilha de bens e de trabalho; a cooperação e parceria interinstitucional; a re­presentação interna e internacional.


29.  Na actuação a desenvolver nos diferentes planos — desde o nacional ao paroquial — recomenda-se o conhecimento das realidades sociais e do papel desempenhado pela Igreja. Seria desejável introdu­zir, nas instituições e grupos de acção social da Igreja, bem como nas próprias comunidades (cfr. OA 4), o hábito do conhecimento e da aná­lise regular dos diferentes problemas sociais da área geográfica abrangida, tendo em atenção os contextos mais amplos. De entre os problemas a ter em conta, justifica-se atribuir elevada prioridade à problemática do desenvolvimento e da exclusão ou marginalização sociais. [x]


A acção social da Igreja e o Estado


30.  Especial atenção deverá ser prestada às relações entre a ac­ção social da Igreja e o Estado, respeitando, em especial, os seguin­tes princípios orientadores:

           — o princípio básico é o da cooperação leal, a partir do respeito mútuo pela identidade e pela autonomia institucional de cada parte em presença;

           — os princípios da co-responsabilidade e da solidariedade peran­te os problemas sociais.


Na medida em que o Estado é a expressão soberana da socieda­de civil organizada, incumbe-lhe assegurar aos cidadãos as condições básicas de garantia dos direitos sociais e outros, sem prejuízo de as instituições particulares, nomeadamente as da Igreja, prestarem o seu contributo por direito e dever próprios.

O diálogo e o entendimento mútuos entre as instituições e o Esta­do constitui a via mais adequada para a salvaguarda dos diferentes princípos a respeitar. Em qualquer caso, para as instituições e grupos de acção social da Igreja é irrenunciável o direito e o dever de serem permanentemente uma instância de consciência crítica da esfera polí­tica, económica e social, sendo-lhes exigível aquela sabedoria e pru­dência próprias dos “filhos da luz”, inconciliáveis com qualquer ati­tude de servilismo, troca de favores ou presunção de infalibilidade.


Animação e coordenação da acção social da Igreja

 

31.  Impõe-se, desde logo, o desenvolvimento da Cáritas, no plano nacional e diocesano, como uma instância típica e oficial da Igreja para a promoção da sua acção social, a partir da assunção de responsabilidades inerentes à comunidade cristã enquanto tal.

Pede-se, nomeadamente, que a Cáritas exerça o seu papel na animação da pastoral social, contribuindo, em especial, para o conhe­cimento dos problemas e a sua leitura à luz da doutrina social da Igre­ja; o apoio à criação e funcionamento de serviços paroquiais de acção social; a intervenção social, com empenhamento directo na pre­venção e solução dos problemas; o contributo possível para a trans­formação social em profundidade, nomeadamente no domínio das relações sociais, dos valores e do ambiente, em ordem ao desenvol­vimento solidário; a formação de agentes…

Nos planos nacional e diocesano, promova-se a criação ou conso­lidação de serviços coordenadores da acção social da Igreja, na perspec­tiva fundamental da comunhão, nos quais se encontrem representadas as diferentes instituições e grupos dessa mesma acção. O Secretariado Nacional de Acção Social e Caritativa cuidará de promover os melhores caminhos de aproximação entre as instituições nele repre­sentadas e os diferentes serviços de coordenação diocesana.

 

32.  É importante, com o apoio do respectivo serviço diocesano, quando exista, e da Cáritas Diocesana, promover a criação ou conso­lidação e o conveniente funcionamento de um serviço paroquial de acção social em cada paróquia, com as seguintes finalidades:

– suscitar e fazer crescer, na paróquia, a dimensão social como exigência da vida da própria comunidade cristã;

– assegurar o conhecimento e o atendimento dos problemas socio-familiares da paróquia, sem qualquer discriminação;

– articular as actividades das instituições e grupos de acção social da paróquia.


33.  Julga-se naturalmente necessário que os serviços diocesanos e paroquiais — respeitando a identidade de cada instituição e grupo —estejam representados nos órgãos de comunhão respectivos, em es­pecial nos conselhos pastorais, e possam ser os representantes credíveis da diocese e das paróquias, na perspectiva sociopastoral.


34.  Sem prejuízo do que fica dito, é indispensável que as dife­rentes obras, grupos, movimentos, fundações, associações e insti­tuições em geral de acção social e caritativa — entre as quais é jus­to salientar as obras de Institutos de Vida Consagrada (modo peculiar de testemunho do Reino), os Centros Sociais Paroquiais, as Miseri­córdias e a Sociedade de S. Vicente de Paulo — disponham de assis­tência espiritual própria da Igreja, também aqui mãe e mestra, e se insiram na pastoral social das respectivas comunidades.


35.  Por sua natureza específica — autonomia jurídica, emprego de pessoas, gestão socioeconómica, parcerias diversas,… — as insti­tuições de acção social da Igreja estão obrigadas a prestar a devida atenção a esses aspectos, ponderando em especial a seriedade na ges­tão, a formação permanente e uma adequada participação dos traba­lhadores, à luz da doutrina social da Igreja.


Formação para a justiça e a fraternidade

 

36.  Deve-se promover a atitude permanente de conversão, pes­soal e das comunidades eclesiais, traduzida no fortalecimento do espírito de justiça social e de fraternidade cristã, particularmente no seio da família, na ajuda entre vizinhos, no voluntariado, na parti­lha de bens e na co-responsabilidade.

Terá aqui particular incidência aquela convicção «do ensina­mento e da prática mais antiga da Igreja de estar obrigada, por voca­ção — ela própria, os seus ministros e cada um dos seus membros — a aliviar a miséria dos que sofrem, próximos e distantes, não só com o ‘supérfluo’, mas também com o ‘necessário’». E, “nos casos de neces­sidade, não se podem preferir os ornamentos supérfluos das igrejas e os objectos de culto divino preciosos; ao contrário, poderia ser obri­gatório alienar estes bens para dar de comer de bebei de vestir e casa a quem disso está carecido” (SRS 31). Para que se evite o escân­dalo de a Igreja “vestir de ouro as suas pedras e deixar nus os seus filhos”, numa célebre expressão de S. Bernardo.     


37. Importa reaproximar a dimensão sociopastoral da profé­tica e da litúrgica, particularmente em ordem à Eucaristia e a par­tir dela. Especial atenção nos deve merecer, não só na compreensão intelectual como na própria acção pastoral, o que a este propósito afir­ma Jesus no contexto do sermão da montanha: “Se estiveres para tra­zer a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que teu irmão tem algu­ma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás apresentar a tua ofer­ta” (Mt 5, 23-24).

Também a catequese em geral e a formação de adultos em es­pecial devem ter em conta, na sua sistematização doutrinal, que “não podemos invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusar­mos a tratar como irmãos alguns dos homens, criados à sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos, que a Escritura afirma: quem não ama, não conhece a Deus”(NA 5).

 

A caridade, sinal distintivo

 

38. Do que fica dito nesta Instrução — obviamente, não exausti­va — pode-se concluir que a pastoral social realiza, na Igreja, uma exigência apostólica tão essencial como a litúrgica e a profética. Daqui decorre, necessariamente, o dever urgente de avaliar em que medida as nossas Igrejas particulares exprimem e testemunham a caridade fraterna que é o sinal distintivo de uma Igreja-comu­nhão.

Neste mesmo sentido, a presente Instrução tem em vista aju­dar-nos, na reflexão eclesial, em ordem a que todos nos empenhe­mos numa acção social da Igreja que traduza a nossa vocação cristã e seja resposta aos desafios sociais e às necessidades dos homens nos­sos contemporâneos e, especialmente, dos mais carecidos e margina­lizados. Tenhamos bem presente que aquilo que caracteriza o agir so­cial cristão é a identidade evangélica: “Nisto reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35), isto é, se entre os cristãos actuar e manifestar a vida trinitária, tal como Jesus a revelou e ensinou a viver aos homens.


Lisboa, Solenidade de Jesus Cristo Rei e Senhor do Universo, 23 de Novembro de 1997




[i] São, de facto, vários os documentos do Episcopado Português nesta ma­téria. Vale a pena recordar: Carta Pastoral sobre o Contributo dos Cristãos para a Vida Social e Política (16.6.1974); Carta Pastoral sobre Perspectivas Cristãs da Reconstrução da Vida Nacional (14.3.1979); Nota Pastoral a propósito do Ano Internacional das Pessoas-Deficientes (19.5.1981); Carta Pastoral sobre Alguns Problemas do Trabalho à luz da Encíclica Laborem Exercens (19.2.1982); Nota do Conselho Permanente sobre a Situação e Vida portuguesa (2.4.1983); Mensa­gem dos Bispos ao Povo de Deus no Ano da Doutrina Social da Igreja “Alguns aspectos da actual sociedade portuguesa” (14.11.1991); Nota Pastoral sobre a actual situação sócio-política portuguesa (27.4.1995).

[ii] O termo “pobreza”, no contexto da presente Instrução, é assumido na sua significação social mais comum, referida à indigência e à escassez de bens ne­cessários a uma vida digna e verdadeiramente humana.

[iii] Pontifício Conselho “Cor Unum”, A fome no mundo um desafio para todos: o desenvolvimento solidário, 4 de Outubro de 1996.

[iv] Segue-se uma apresentação sucinta das principais razões teológicas da opção pelos pobres, seguindo o esquema do documento de reflexão “La Jglesia y los Pobres”, da Comissão Episcopal de Pastoral Social da Conferência Episcopal Espanhola, n. 17 a 25.

[v] “Nesta perspectiva e recordando que Jesus veio «evangelizar os pobres» (Mt 11,5; Lc 7,22), como não sublinhar com a maior decisão a opção preferencial da Igreja pelos pobres e os marginalizados? Antes, deve-se afirmar que o empe­nho pela justiça a pela paz num mundo como o nosso, marcado por tantos confli­tos e por intoleráveis desigualdades sociais e económicas, é um aspecto qualificante de preparação e da celebração do Jubileu. Assim, no espfrito do Levítico (25,8-12), os cristãos deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como tempo oportuno para pensar, além do mais, numa importante redu­ção, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o desti­no de muitas nações. O Jubileu poderá ainda oferecer a oportunidade para medi­tar sobre Outros desafios do momento, tais como, por exemplo, as dificuldades de diálogo entre culturas diversas e as problemáticas ligadas com o respeito dos direitos da mulher e com a promoção da família e do matrimónio” (TMA 51).

[vi] Entre outros documentos e estudos, podem-se ver as encíclicas Sollicitudo Rei Socialis (particularmente n. 11 a 26) e Centesimus Annus (particularmente n 30 a 43); também “Justiça no Mundo” (Sínodo de 1971), n.ºs 7 a 27.

[vii] Trata-se, bem entendido, daquele desenvolvimento autêntico (cfr. PP 14), “verdadeiramente humano”, longamente tratado nos n. 27 a 35 da Carta Encíclica Sollicitudo Rei Socialis.

[viii] Muito concretamente, sobretudo na filosofia da construção da Europa dos nossos dias, o princípio de subsidiariedade revela-se como um dos mais importan­tes contributos da Doutrina Social da Igreja (onde foi formulado e continuamente reflectido) para a vida política, econ6mica e social do nosso tempo.

[ix] A título de exemplificação, refira-se que está em curso um levantamento das actividades sociais da Igreja. As mais de 1 200 instituições que responderam aos inquéritos atendiam, na altura, cerca de 243 900 utentes, com um somatório de 3 386 unidades de acção, em termos de valências, empregando profissionalmente mais de 27 300 pessoas e envolvendo directamente mais de 8 000 voluntários. Acresce ainda toda a acção de grupos, de índole mais informal, que desenvolvem um leque extremamente diversificado de actividades. Os cerca de 900 grupos, com estas características, que responderam aos inquéritos envolviam aproximadamente 11 600 voluntários e atingiam na sua acção mais de 103 500 pessoas.

[x] Por índole própria, as comissões nacionais e diocesanas de Justiça e Paz podem contribuir para a leitura objectiva e actualizada das realidades sociais e, ain­da, para a formulação de propostas.

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