Sir 35, 15b-17.20-22a; Sl 33; 2 Tim 4, 6-8.16-18; Lc 18, 9-14
Lucas, resumindo-se a si mesmo
O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado
e salva os de ânimo abatido. (Salmo)
Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros: «Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’. Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado». (Lucas)
Lucas, resumindo-se a si mesmo
Este texto encerra uma parte grande do evangelho que é um “exclusivo” de Lucas, um conjunto de parábolas e discursos colocados no “caminho” de Jesus para Jerusalém, onde se evocam temas muito particulares deste evangelista: a pobreza, a humildade, a especial solicitude da Igreja pelos pecadores que se arrependem, o próprio “caminho (subir, descer)… e também a oração! É, portanto, uma parábola que funciona como que sendo um resumo final do que Lucas dá como essencial no seu evangelho: a preferência de Deus pelos últimos, social e religiosamente considerados.
Nesta parte “exclusiva” de Lucas há, como já notámos em semanas anteriores, a influência de S. Paulo, que Lucas acompanhou pessoalmente, e que se nota neste texto do evangelho pelo tema da “justificação”: “este desceu justificado para sua casa e o outro não”.
O tema da “justificação” e da sua unidade intrínseca com a “Lei” foi um dos mais marcantes da Igreja primitiva, porque criou um conflito interno entre aqueles que defendiam a exigência do cumprimento da Lei de Moisés para se poder ser cristão e aqueles que achavam que não se podia exigir isso aos cristãos, porque a santificação era um fruto de Deus através de Jesus Cristo e não uma questão de mérito pessoal diante de Deus pelo cumprimento de um conjunto de normas. Para estes, onde se inclui Paulo e Lucas, por mais coisas boas que eu faça e leis de Deus que cumpra, eu terei sempre também, em simultâneo, algum espaço de pecado, algum âmbito de infidelidade a Deus. Portanto, diante de Deus, todos pecámos, todos nos tornámos indignos de ser amigos de Deus e todos merecemos a condenação pelos nossos pecados. Por isso só o amor misericordioso do Pai, através da redenção de Jesus Cristo, nos pode voltar a tornar dignos de Deus.
Lucas, que comunga desta visão, insere-a no contexto da oração, que para ele deve ser humilde e recta de coração, partindo da realidade do pecado pessoal e não das “boas obras pessoais”. Claro que ele não condena as obras boas (jejuar, pagar dízimo etc.) dos fariseus; o que ele condena é a atitude altiva, o auto-juízo de santidade e o desprezo dos outros a partir dessa lista de obras bem cumpridas. Por isso, Lucas, embora cite os fariseus e não deixe de os incluir na acusação de indignidade diante de Deus, alarga essa acusação ao partido dos cristãos judaizantes, e de modo genérico a todas as pessoas, mesmo não crentes, que assumem essa atitude de superioridade moral em relação ao resto da humanidade. De facto, o fariseu divide a sua superioridade em duas perspectivas: em relação ao resto dos homens (quem são ladrões, injustos e adúlteros) e em relação ao publicano (que não cumpre os mandamentos da Lei).
Resumindo: a parábola é para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros; era e é! Ainda hoje, a Igreja e a sociedade estão cheias de pessoas que se consideram justas e desprezam os outros. Pessoas que se auto-consideram a medida padrão de tudo e todos, às vezes até de Deus. Pessoas que recusam a diferença. Pessoas incapazes de ouvir, de compreender, de ver, porque já sabem os pecados dos outros de cor…
Ocorre dizer: maldito pecado, este da superioridade: há um filme de 2008, sobre a pobreza no mundo, que a determinada altura mostra uma catedral (o “templo”) numa cidade da América Latina, na Bolívia, em que os brancos de ascendência europeia estão sentados nos bancos e os índios, os povos autóctones, se sentam (ainda) no chão, a um canto: inferioridade inculturada ao longo dos séculos. Afinal, não estamos muito longe nas atitudes e nos comportamentos, pessoal e colectivamente, daquele fariseu!
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