7 de Março – 3º Domingo da Quaresma
E se Deus fosse injusto?!
Naquele tempo, vieram contar a Jesus que Pilatos mandara derramar o sangue de certos galileus, juntamente com o das vítimas que imolavam. Jesus respondeu-lhes: «Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito homens, que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou? Julgais que eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante.
Jesus disse então a seguinte parábola: «Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi procurar os frutos que nela houvesse, mas não os encontrou. Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há-de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’ Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano». (Lucas)
E se Deus fosse injusto?!
A psicologia social reconhece no comum das sociedades aquilo a que chama “a crença num mundo justo”, e que é a crença de que os males praticados neste mundo são castigados neste mesmo mundo. Topamos essa crença quando ouvimos alguém justificar o mal que aconteceu à pessoa A com o mal que essa pessoa terá feito noutra altura a uma pessoa B, ou ainda mais simplesmente no aforismo “cá se fazem, cá se pagam”.
É uma crença mais ou menos ingénua, e parece que não é daí que vem grande mal ao mundo. Mas quando transportamos essa crença para o mundo religioso as coisas complicam-se. Se o mal que acontece a alguém é castigo (reposição da justiça) de um mal feito anteriormente, quando alguém sofre alguma desgraça começamos a questionar-nos sobre que mal teria feito essa pessoa antes… E como muitas vezes não vemos mesmo mal nenhum, tapamos esta ignorância com a suposição de algum pecado grave que tal pessoa terá praticado, pecado não público, mas tão objectivo que Deus teve que intervir para repor a justiça… Não falta hoje ainda, por exemplo, quem veja na SIDA alguma semelhante acção justiceira de Deus!
Mas no tempo de Jesus era crença comum e religiosamente arreigada: quem sofria alguma desgraça é porque algum pecado tinha feito! Isto, apesar da reflexão sapiencial, como o livro de Job, há muito ter recusado essa relação efeito-causa, entre uma desgraça acontecida a alguém (efeito) e um qualquer pecado praticado (causa).
Jesus recusa dar credibilidade a esta crença, que dois acontecimentos concretos tinham reavivado muito intensamente por aqueles dias. Recusa a crença, mas não foge à questão por ela levantada. E tira a seguinte conclusão: não é uma desgraça que prova um comportamento não digno, mas é um comportamento não digno (não convertido) que transforma a vida em desgraça, mesmo que a visibilidade dessa desgraça seja nula: “se não vos converterdes, morrereis do mesmo modo”. Evidentemente, esta “morte” anunciada para quem vive não dignamente não é uma morte física, mas uma morte espiritual, uma morte da pessoa na essência do seu ser, do seu agir, do seu devir.
Lucas associa a esta discussão a parábola do vinhateiro que procura frutos três anos na figueira e não os encontra. Não se refere aqui explicitamente o profeta Amós, mas a parábola e o contexto parecem supô-lo. De facto, trata-se de uma discussão sobre a justiça (e em última instância sobre a justiça de Deus) e Amós é tipicamente o profeta da Justiça. Além disso, Amós usara e abusara do rifão: “por causa do triplo e do quádruplo crime… (de alguém), eu (Deus) não ficarei quieto…, mas vou punir…”. Ora temos aqui exactamente o mesmo “triplo” (três anos) e quádruplo (deixa-a ficar ainda mais um ano).
Só que Jesus aqui não alinha com Amós. Onde Amós vira a necessidade do castigo de Deus (para punir o triplo e quádruplo crime), Jesus coloca a misericórdia de Deus. Jesus substitui a justiça pela misericórdia! Mesmo que houvesse pecado, e que esse pecado fosse o máximo de pecado imaginável, não seria por causa desse pecado que Deus mandaria Pilatos matar galileus ou que sopraria a torre de Siloé para cima dos 18 homens que morreram na sua queda.
Já o referi muitas vezes: esta é a parábola do Deus que nos ama até ao absurdo: para além de ter esperado os nossos frutos todo o tempo possível (três é totalidade), por absurdo, como se fosse possível mais tempo do que o tempo todo, rega, aduba e poda um ano mais, esperando os frutos nunca dados. Deus é o vinhateiro da misericórdia infinita. Quem reclama o deus de Amós não aprendeu ainda nada com Jesus de Nazaré.
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