A Caridade, essência do ser Igreja
Luciano Manicardi, monge del Mosteiro de Bose (Itália)
Porto, 24 de Novembro 2012
I. A Caridade e a Igreja hoje
O caráter Histórico da Caridade
A caridade acontece sempre dentro dos relacionamentos humanos. Relacionamentos interpessoais, sociais, políticos. A caridade acontece na história, num espaço e num tempo concretos. A caridade é histórica, não é um princípio abstrato. Assim também a caridade cristã, que manifesta e mostra que “Deus é Amor” (1 Jo. 4, 16), a caridade que tem portanto uma configuração teológica essencial, a caridade que encontra a sua personificação em Cristo, a caridade suscitada pela ação do Espírito Santo, a caridade que “pertence à natureza [da Igreja] e é expressão irrenunciável da sua própria essência'”[1], também esta caridade acontece na história, manifesta-se e toma forma no hoje histórico. Se é verdade que a caridade é sobretudo fundamento teologal da Igreja, pelo qual podemos falar de “Eclesia in caritate Dei”, ou seja do amor de Deus dentro do qual a Igreja é e vive, é também verdade que a Igreja de Deus é chamada a fazer-se responsável da caridade na história, a ser sacramento na história. Sim, a Igreja tem a responsabilidade histórica de narrar a caridade: está chamada a ser epifania da caridade de Deus hoje. De facto, Deus faz-se presente: “Ubi caritas est vera íbis Deus est ” (“Onde a caridade é autêntica aí está Deus”). Não existe, por isso, outro lugar da caridade senão a história, o hoje, o corpo: corpo pessoal, social, eclesial, mundial.
Para a primeira carta de João, o critério de autenticidade da experiência espiritual cristã é o caráter concreto, visível, tangível, quotidiano do amor ao irmão: “Quem não ama o próprio irmão que vê, não pode amar Deus que não vê” (1 Jo. 4,20). “Ser a verdade”, uma realidade tão querida na tradição do evangelista João, implica “ser a caridade”. E para a revelação bíblica a caridade tem um valor efetivo, muito mais do que afetivo; um valor interpessoal, histórico, político, social. Jesus narrou-nos a caridade de Deus vivendo-a no seu corpo, “fazendo-a”, nos seus relacionamentos.
“Os dias maus” (Ef. 5,16) dias de crise da caridade
O hoje histórico conduz-nos à palavra “crise”. Quando falamos de crise hoje, referimo-nos ao aspeto económico e financeiro, mas se olharmos a realidade desde o ponto de vista da Revelação bíblica e do Evangelho, encontramos outras dimensões da crise que normalmente são silenciadas mas que a Igreja, cuja existência é caridade, deve exprimir. Para a Bíblia, a crise não é o fruto da autoconsciência do individuo ou de uma comunidade que se sente desconfortável e nem sequer é o resultado de uma análise feita por peritos o técnicos que avaliam uma situação como crítica ou insustentável, mas é revelada, compreendida e enfrentada a partir da palavra de Deus, frequentemente da palavra profética. A palavra de Deus, provocando um impacto da vontade de Deus na realidade humana e histórica, traz como a Krisis, o juízo, sobre uma tal situação. E pode acontecer que uma situação que ninguém percebia como crítica, seja sentida como tal a partir da palavra de Deus revelada pelo profeta. A época de Jeroboão II – rei de Israel entre 785 e 743 – era próspera economicamente e certamente não era percebida como uma época de crise, mas precisamente então, o profeta Amós denunciou a injustiça social que esvaziava de conteúdo a prática cultural e religiosa. A palavra de Deus vê a realidade desde outra perspetiva, a partir de outro ponto de vista diferente do dos homens, tem outros critérios de discernimento. Assim, graças à palavra profética, a crise torna-se desmascaramento. O profeta ousa ter este olhar audaz, contracorrente, não homologado aos poderes do mundo, e paga as consequências. O que é crise para o Povo de Deus, e portanto também para a Igreja, não pode ser determinado simplesmente por parâmetros sociológicos e económicos, mas pela santidade da Palavra vivificada pelo Espírito.
O hoje histórico diz-nos que estamos a viver tempos difíceis para a caridade, aliás, difíceis para a justiça e para a razão, para a solidariedade e para a compaixão, para a fraternidade e para a humanidade. Sobretudo para a humanidade débil, desfavorecida, indefesa, pobre e sem voz. E esta humanidade torna-se o ponto de vista com o qual a palavra de Deus olha e julga a realidade.
A Bíblia, tanto na literatura profética (Miq. 2,3) como no NT (Ef 5,16) fala de dias ou tempos maus, para indicar tempos de crise. Escreve o autor da carta aos Efésios: “Portanto, vede bem como procedeis: não como insensatos, mas como sensatos, aproveitando o tempo (ou mesmo: “resgatando o tempo”), pois os dias são maus. Por isso mesmo, não vos torneis néscios, mas tratai de compreender qual é a vontade do Senhor” (Ef. 5,15-17). “Os maus dias” são uma expressão metonímica que se pode explicar assim: nestes tempos há pouca caridade e muita maldade, há uma difundida e arrogante presença do mal. Os dias maus são os tempos nos quais dominam pessoas, grupos de poder e lóbis declaradamente arrogantes e prepotentes. Os dias maus, dias de crise da caridade, são também tempos que fazem sofrer os crentes. Pois bem, perante os dias maus, a carta aos Efésios não nos convida à fuga ou à falta de compromisso mas, antes pelo contrário, convida-nos a comprometer-nos indo contra a corrente, a lutar, assumindo a forma e a mentalidade de quem resiste. O crente, em tempo de crise, está chamado a ser um resistente. É o momento de, na Igreja, saber declinar-se historicamente a fé como resistência, como capacidade de dizer “não” para salvar o grande “sim” não negociável ao Evangelho e ao direito dos pobres, à pessoa do pobre. O tempo de crise é, por isso, um tempo de ação responsável dos crentes que sabem dar o nome às obras dos malvados e sabem também opor-lhes resistência, ou seja, com a sua ação responsável. No trecho dos Efésios, ocorre por três vezes a oposição “não… mas” (Ef. 5,16.17.18) que indica a oposição do cristão à mundanidade, aos modos da mundanidade, por quanto estes possam parecer vencedores. E preciso um esforço de discernimento para se deixar guiar por aquilo que é agradável ao Senhor, pelo Evangelho. E preciso vigiar, estar atentos, lúcidos, críticos. Os dias maus são a ocasião para viver o Kairós, o momento presente, e vivê-lo manifestando a diferença cristã.
Que significa a expressão da carta aos Efésios “Fazer tesouro do tempo” ou, como por vezes se traduz, “resgatar o tempo”? Antes de mais significa que não temos outro tempo que não seja este, que é este – e não outro – o tempo que nos é dado para viver a nossa humanidade e a nossa fé. Trata-se, então, de deixar decididamente a cultura da lamentação, sempre latente e mostrar que a maldade dos tempos não tem a última palavra, mas enfrentando-a não com uma outra maldade de sentido inverso, mas antes com uma prática inspirada na diferença cristã, no Evangelho, na vontade de Deus. De facto, também durante os momentos de crise, se evidencia a “vontade do Senhor” (v. 17). Os dois possíveis significados do verbo grego exagorázesthai “fazer tesouro” ou “resgatar” podem então conviver. Do que se trata é de fazer tesouro do hoje, do tempo presente, de aderir ao hoje para viver de modo evangélico também o momento no qual a maldade impera. E trata-se de se tornar responsáveis pela caridade e pela justiça hoje.
A caridade da razão
Creio que a Igreja hoje, no precário panorama social e económico, deve lembrar-se que é mesmo urgente assumir a caridade da razão. É importante recordar as razões da caridade, mas urge sobretudo instaurar a caridade da razão. É necessário portanto que a razão política seja enxertada na caridade e a justiça, saiba estar habitada pela caridade, ou seja, pelo sentido de sofrer do outro, pelo sentido da sua unicidade e singularidade, pelo sentido do humano presente em cada homem antes ainda de uma qualquer sua definição. E sublinho caridade da razão, exatamente para não a reduzir a sentimento ou vaga piedade: caridade é sentido do outro e por isso dos seus direitos enquanto ser humano, sendo este um princípio fundamental também para a justiça.
A caridade social da qual fala o Catecismo da Igreja Católica e o estreito relacionamento entre justiça e caridade, evocado por Bento XVI na encíclica Deus caritas est, pedem que se faça própria a ideia de que se a caridade é amor ao irmão, a justiça é amor dos direitos dos irmãos. Longe de representar duas dimensões opostas, justiça e caridade podem e devem encontrar-se: a justiça é o rosto social da caridade.
No coração da experiencia cristã está o amor ao próximo, que o Novo Testamento afirma ser recapitulação de toda a Torah: “Cada mandamento recapitula-se nesta palavra: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da Lei” (Rom. 13, 9-10). Considero, pois, que colocar hoje a questão do “próximo” se possa resolver no indicar, como via prioritária a percorrer pela caridade, a via da humanidade do homem. A questão do próximo é a questão do humano. Frente ao inumano que de mil formas oprime ao homem (e que a caridade está chamada a descobrir e denunciar), a caridade quer proteger o humano, fazer resplandecer o humano, vivificar o humano, sobretudo onde é mais espezinhado e desprezado, humilhado e insultado, obrigado a envergonhar-se e esconder-se. E, se como dizíamos, a justiça, rosto social da caridade, é amor pelos direitos do homem e paixão de os afirmar e defender, a caridade é amor efetivo pelo homem: a questão do próximo conduz-nos então a uma questão ainda mais radical dos direitos do homem. Conduz-nos dos direitos do homem, até ao homem que é titular de tais direitos, em virtude do seu ser homem. Sem uma adequada atenção à humanidade e à dignidade dos titulares dos direitos, o significado dos próprios direitos empobrece-se muito.
O caso (que veremos depois) das leis do Antigo Testamento que frequentemente não apontam simplesmente a garantir direitos, mas a humanizar o homem, a educá-lo à empatia e à compaixão, a proteger e garantir a humanidade das pessoas, exprime bem que o homem tem desejos e expetativas que não se satisfazem em termos de direitos. Podemos dizer que os direitos são sinais de um bem mais radical e substancial, digno de respeito e tutela enquanto tal: a humanidade da pessoa humana. E para defender e promover a humanidade de uma pessoa, também categorias como responsabilidade, pessoa, solidariedade e, precisamente, proximidade, são de grande ajuda. Tarefa da caridade, hoje, é, então, praticar a resistência à redução do homem a não-homem, das pessoas a não-pessoas.
Os dias maus pedem, em suma, a restauração da gramática básica da atenção ao outro, a defesa da centralidade da pessoa necessitada, sem voz, sem poder, sem visibilidade, pedem a redescoberta da urgência da caridade. E a conversão das consciências deve passar antes de mais através de uma obra sensível, ou seja atuada com os sentidos humanos: ver o pobre, reconhecer a sua necessidade, prover porque não há tempo, porque a fome, a sede, a falta de abrigo, de trabalho, não toleram esperas. A consciência bíblica sabe-o muito bem. Antes do anoitecer é preciso restituir o manto a quem o entregou em penhora: porque de outro modo com que poderá ele cobrir-se? (cf. Ex. 22, 25- 26)
A caridade contra a humilhação das pessoas
Hoje a Igreja tem diante de si um trabalho decisivo sobre a caridade. Lembrar-se de que a caridade é tal quando assume o trabalho de reconstruir uma gramática do humano e da proximidade. Está chamada a confirmar o princípio de humanidade e a conjugá-lo novamente, perante as várias formas de inumanidade. Não nos esqueçamos que “o homem é tratado segundo a ideia que temos dele, assim como também nós fazemos uma ideia do homem segundo a forma com a qual o tratamos”[2].
Uma prática verdadeiramente humana e uma cultura da proximidade querem opor-se à prática da humilhação, como a chama o filósofo Avishai Margalit, que por humilhação entende não serem tratados plenamente como seres humanos, ser induzidos a envergonhar-se de si mesmos, da própria condição, a exclusão, de facto, da condição humana.[3] Na atual situação económico-financeira, não são só os indivíduos, mas também nações e povos inteiros que são humilhados, é a identidade nacional que é posta em crise, são alguns estados-nações que são atacados e humilhados. Ora, também uma sociedade inspirada em critérios de justiça, poderia fomentar dinâmicas de humilhação no prover aos cidadãos, ou melhor, aos membros certificados de tal sociedade, o que depois não assegura aos imigrantes legais e ilegais, refugiados, exilados, que gozam de direitos limitados, que ainda não são cidadãos como os outros, também na forma de distribuição dos bens e dos direitos: podem ser distribuídos bens de primeira necessidade a populações esfomeadas, lançando-lhes o alimento como se fosse a cães. A gestão da pena e a forma de tratar os presos, assim como as políticas de trabalho são, segundo Margalit, lugares significativos para avaliar a capacidade de uma sociedade de não humilhar.
Então: amar ao próximo? Não humilhar. Opor-se às práticas da humilhação. Uma estudiosa de direito escreveu: “Muitos são os atos que podem humilhar os indivíduos sem violar os seus direitos: também a burocracia pode ser humilhante, bastando estar baseada, como está, em relacionamentos despersonalizados, insensíveis à unicidade de cada pessoa. A essência da humilhação é a indiferença que reduz as pessoas a ‘casos’ a enfrentar: um número de uma lista, uma assinatura, um pedido de admissão, um formulário a preencher, um corpo a submeter a investigação. Os relacionamentos entre o cidadão e as instituições podem ser o âmbito no qual o individuo fica sem rosto, sem que isto implique necessariamente que fique sem direitos”[4].
Caridade crítica
A caridade de que estamos a falar deve fornecer-se de capacidade crítica. A prática da caridade deve ser enriquecida cada vez mais de razão e de inteligência e transformar-se em obra crítica, que por isso exerce um juízo sobre situações e sobre realidades, que expressa uma palavra forte e clara, profética, sobre os males que produzem pobreza e marginalização: é preciso entrar numa caridade crítica. Caridade da razão significa também capacidade crítica por parte da caridade. Esta dimensão crítica deve ser parte da evangelização, do anúncio do Evangelho da caridade.
A experiencia profética mostra a essencialidade da palavra profética que intervém nos momentos críticos para despertar as consciências dos membros do Povo de Deus e revelar-lhes quanto está a acontecer frente aos seus olhos ou aquilo de que eles próprios se estão a tornar responsáveis. Sim, na crise o crente está chamado a ser um resistente, uma pessoa que luta na prova, como Job, uma pessoa que encontra a oposição dos potentes e dos sacerdotes da corte como Jeremias. Mas sobretudo, está chamado a encontrar a coragem da palavra. Sem a palavra profética, sem a palavra que anuncia o juízo de Deus, a crise não é colhida em todas as suas dimensões e, portanto, não pode ser superada. A crise precisa da coragem da palavra, a parresia, a franqueza de quem se expõe, de quem finalmente ousa, de quem diz mal do mal, de quem não se protege atrás da demasiada prudência, mas diz a verdade, e se for preciso, grita-a.
Se nos momentos difíceis o medo faz caminho, é preciso sair do medo que paralisa a ação e silencia as palavras para transformar o medo em virtude fazendo com que ele evolua para responsabilidade. A palavra profética desenvolve a sua missão caritativa também denunciando e desvelando: pondo a nu os riscos de um estilo de vida, de uma economia, de uma política, de um relacionamento com o ambiente que pode levar a desastres para as gerações futuras e para o mundo, para além de agravar as diferenças já existentes entre países ricos e países pobres e criar sempre novos pobres.
Ao mesmo tempo, a palavra profética em tempo de crise não é só uma palavra de denúncia, mas uma promessa de futuro no qual acredita e torna possível. Jonas, pregando contra a sua própria vontade a desgraça de Nínive, ajudou à conversão e à transformação do futuro que já tinha sido marcado para a cidade pagã. Eis então a palavra que precisamos hoje: uma palavra que olha para a crise e para os motivos de temor, mas que transforma o medo em esperança e confiança. É preciso desenvolver e exercitar a capacidade da imaginação: perspetivar alternativas, criar horizontes, imaginar possibilidades. Não nos esqueçamos que “a Bíblia é um livro que imagina a verdade”[5], muito mais do que afirmá-la em proposições dogmáticas e abstratas. Esta palavra ao mesmo tempo lúcida e transmissora de esperança, desencantada e aberta ao futuro, crítica e vital, que vê a realidade e imagina o futuro, é a palavra paradoxal que pode fazer eco hoje à palavra paradoxal que é o Evangelho: aquele Evangelho que é paradoxo desde o início até ao fim enquanto anuncia que os últimos serão os primeiros, que os aflitos são bem-aventurados, que a morte será vencida.
II. Razões bíblicas da caridade
Depois de ter mencionado a caridade da ração, abordemos agora as razões da caridade. Como já especificamos, falar da caridade significa falar também da justiça, que é inseparável dela. Não nos podemos esquecer de que o que chamamos “caridade”, em hebraico, a língua da Torah, é expresso pela palavra tsedaqah, frequentemente traduzida com a palavra “justiça”. O vocábulo hebraico, na verdade, indica também a “esmola”, a “caridade”, a “retidão”, a “virtude”, a “equidade”. Uma passagem muito interessante do livro dos Provérbios afirma que “a tsedaqah liberta da morte” (Prov. 10, 2). As traduções variam: pode-se entender que “a justiça liberta da morte”, ou que “a caridade liberta da morte” ou que “o bem feito liberta da morte”. Esta última tradução não implica uma conceção meritória do fazer, mas significa que, entrando no relacionamento justo com o outro, contatando com a sua necessidade, o homem entra numa relação de caridade: então, doando-se e gastando-se pelo outro, o homem liberta-se da morte que é encerramento sobre si, a autorreferencialidade, o fechar-se do coração sobre si próprio. Nós somos salvos graças aos outros e através dos outros: eles, de facto, permitindo-nos a relação, fazem com que entremos no sentido da vida, que consiste justamente no encontro e na abertura à alteridade. E a tsedaqah, a justiça- caridade, apresenta-se com uma dupla aceção: é uma obrigação que provem do mandamento de Deus, mas é também um desejo que habita no coração do homem e impulso que flui da consciência da criatura de ser um humano ao lado de outros humanos. As razões da caridade e da justiça encontram-se portanto na Vontade de Deus e no coração do homem, e, em última instância, sintetizam-se na pessoa de Jesus Cristo.
As leis do Antigo Testamento
As leis contidas na primeira parte da Bíblia Hebraica, no Pentateuco, são os textos bíblicos que os cristãos frequentam e conhecem menos. Mas é mesmo deles, desses textos que tentam instaurar a justiça nos relacionamentos humanos, que podemos extrair uma série importante de razões da caridade. Muitas leis apresentam não só o ditado legislativo, mas também a motivação que subjaz à medida prescrita. E muitas destas motivações procuram plasmar a humanidade do homem, criar um rosto humano para o homem, infundir humanidade nos relacionamentos entre os homens, fazer nascer e crescer a caridade nos relacionamentos interpessoais, sociais e políticos.[6] A valência educativa e pedagógica da lei é canalizada no sentido de ajudar o homem a ser cada vez mais homem, a adquirir um coração de carne.
Em Êx 22, 20, afirma-se: “Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egipto.” E em Êx. 23,9 está escrito: “Não oprimirás o imigrante; vós conheceis a vida do imigrante, porque fostes emigrantes na terra de Egito”. Os dois textos requerem um trabalho interior porque fundamentam-se na memória, no relembrar que é pedido ao filho de Israel ao qual são dirigidas as exigências: estas leis fundamentam-se na consciência de que a memória, e particularmente a memória do sofrimento padecido quando se viveram circunstâncias de desvantagem, pode libertar da coação de repetir, da tentação, portanto, de repercurtir sobre outros, que se encontram hoje na mesma situação, a violência padecida precedentemente. Estas leis procuram impedir que a vítima de um tempo se transforme no opressor de hoje. Relembrando a própria experiência passada de emigrante em terra estrangeira, com a sua carga de sofrimento e dificuldade, relembrando o peso do ritmo de trabalho que tirava a respiração, que extenuava fisicamente, que “causava o arfar” (“vocês conhecem o respiro do emigrante”), o filho de Israel é levado a cumprir, não só gestos externos em favor dos outros, mas a compreender a partir de dentro num movimento de verdadeira compaixão, quem se encontra hoje numa situação análoga à sua de um tempo, humanizando assim o relacionamento com ele.[7] Portanto, uma primeira razão da caridade é que o outro é um outro eu mesmo: a sua história não é extranha à minha.
Outro texto bíblico legislativo diz: “Não receberás em penhor o par de mós, nem sequer a mó de cima, pois seria receber em penhor a própria vida” (Dt. 24, 6): de facto, trata-se de objetos vitais para o sustento do outro e da família. Também neste caso a lei não se limita a estabelecer normas impessoais a aplicar, mas contém um apelo ao homem, para que abra o seu coração ao outro: é uma lei que ao regular os casos tem em conta as pessoas. A lei pede que se preste atenção às condições reais da existência do outro e à possibilidade da sua sobrevivência e da sua família, pede assim que se humanize o relacionamento com ele: a vida do outro pode limitar aquilo que se teria direito a exigir de ele. A comum humanidade funciona como reguladora dos relacionamentos recíprocos.
A lei contida no Êx. 22, 25-26 afirma: “Se penhorares o manto do teu próximo, devolver-lho-ás até ao pôr-do-sol, porque a capa é tudo o que ele tem para cobrir a pele. Com que é que ele se deitaria? E se vier a clamar a mim, ouvi-lo-ei, porque Eu (o Senhor) sou misericordioso”. Novamente a lei tenta despertar no homem a consciência do outro e a sua situação de necessidade. A motivação da lei é importante tanto quanto o pedido da lei, e se calhar ainda mais: obedece-se verdadeiramente à lei só se se entra na profunda compreensão da sua motivação. E esta motivação tende a suscitar empatia, a acolher, participando, o sofrimento do outro. Esta lei tende a transformar uma relação credor-devedor numa relação entre pessoas, entre criaturas humanas. A justiça é tal quando é humana: “O justo deve ser humano” (Sab. 12,19).
Uma outra razão da caridade é então que o sofrimento do outro é também o meu, é semelhante ao meu. A experiência universal do sofrimento teria que habitar sempre o legislador, para o guiar na elaboração de medidas de justiça justa, ou seja humanas. O corpo do outro, que o personaliza e separa de mim, é também aquilo que o faz semelhante e próximo a mim. Mas é preciso acrescentar: o outro é um corpo e um rosto único, portanto uma unicidade irrepetível absoluta. E o rosto do homem é o único e verdadeiro ícone do transcendente entre os homens. As ofensas à humanidade do homem são ofensas dirigidas diretamente a Deus.
Outro texto interessante encontra-se em Lv 19,9-10: “Quando procederdes à ceifa das vossas terras, não ceifareis as espigas até à extremidade do campo, e não apanhareis as espigas caídas. Não rebuscarás também a tua vinha, e não apanharás os bagos caídos. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, teu Deus”. Aqui emerge a atenção ao pobre e ao forasteiro, aqui é preciso deixar alguma coisa que possa assegurar a sua subsistência. Neste caso a lei não intervém para reparar uma injustiça, mas para incutir no coração do homem o “sentido do pobre”, a atenção a quem está em desvantagem, a memória quotidiana do pobre, do facto que existem os pobres, e portanto existe também a injustiça.
O que se evidencia em muitos textos legislativos é que frequentemente as leis bíblicas apontam a humanizar as pessoas e é mesmo por isto que se tornam fatores para o melhoramento da vida social. Uma lei tem também valência pedagógica e formativa, pois instaura um clima, determina um hábito, contribui para o enraizar-se dos comportamentos éticos, dá forma à cultura.
As leis bíblicas fornecem-nos várias razões para uma prática da caridade. Sobretudo são estas leis e estes mandamentos que se cumprem num “único preceito: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo'” (Gál 5,14). Esta, então, como diz a Carta de Tiago é “a lei real” (Tg. 2,8).
A profecia
A referência aos textos proféticos da primeira aliança pode enriquecer a nossa reflexão sobre as razões da caridade. Sobretudo se compreendemos a profecia como participação do homem no pathos de Deus e sobretudo no seu pathos pelo homem que sofre e é pobre, pelo débil e o oprimido, pela vítima da injustiça e da exploração. Na profecia, a caridade configura-se como justiça, mas a justiça e a prática da libertação aparecem sob o sinal do sofrimento. A razão radical da caridade, nesta perspectiva, reside naquilo que o próprio Deus sente em relação à pobreza do pobre e do sofrimento de quem sofre.
Mas o que nos diz a Bíblia quando fala de justiça e do Deus justo? A justiça não corresponde a uma norma ética absoluta, mas é uma realidade relacional, porque tem a ver com os relacionamentos intra-humanos, e relativa, porque está sempre vinculada a um grupo humano especifico, uma comunidade, um grupo social ou familiar. Exercitar a justiça, biblicamente, não significa atuar asceticamente com um comportamento objetivo que prevê a sanção e a pena perante a injustiça cometida. Exercitar a justiça implica um compromisso apaixonante em favor da vítima, e o trabalho para que quem foi magoado possa ser compensado e reincorporado nos seus direitos e quem cometeu a injustiça possa tornar-se inofensivo. “Na Bíblia o juiz não é só uma pessoa que tem a capacidade cognitiva de examinar um caso e pronunciar uma sentença, mas é também uma pessoa que sofre e pena perante a injustiça”[8].
Podemos conceber a justiça como sofrimento perante a injustiça, como sofrimento perante o fracasso de quem a comete e como compaixão perante a vítima da injustiça.
Mas gostaria de sublinhar uma única coisa, a cólera de Deus como fator de justiça. “Deus é um juiz justo, cada dia acende-se a sua ira” (Sal 7,12). A ira de Deus não resulta de um capricho ou do arbítrio de Deus, não indica um déficit de justiça mas, antes pelo contrário, exprime a participação de Deus, o seu pathos, perante ao mal que foi cometido: Deus fica ferido pelo mal que o homem comete contra o homem. A ira divina e profética perante o mal é também e sobretudo sofrimento. Os profetas, participantes do pathos divino, partilham e manifestam a indignação, o escândalo de Deus, a sua cólera, perante o mal cometido. A justiça começa na ira, na raiva e na indignação perante a injustiça e a cólera transforma-se em denúncia que tem como finalidade a conversão do pecador, mas que nunca “deixa correr” e ainda menos justifica o mal cometido. A profecia sintetiza-se na exclamação que Deus não só não é indiferente ao mal mas antes considera que o pior mal é mesmo habituar-se ao mal, até não se escandalizar mais dele, até não se deixar ferir mais por ele nem se perturbar. “O sentido humano da injustiça é uma pobre analogia do sentido divino da injustiça. A exploração do pobre é para nós uma verdadeira transgressão, para Deus é uma desgraça. A nossa reação é a desaprovação; a de Deus é algo que nenhuma linguagem poderia transmitir. Será então um sinal de crueldade que a ira de Deus se desencadeie quando os direitos do pobre são violados e quando viúvas e órfãos são explorados?”[9]. A ira é a outra face da compaixão.
Ao mesmo tempo, o Deus bíblico é o Deus compassivo que com-sofre com a vítima da injustiça. O Deus que intervém para restabelecer a justiça aí mesmo onde ela tem sido pisada, é o Deus que com-sofre com o povo oprimido: “Em todos os sofrimentos do povo Ele sofreu com eles” (Is 63,9).
III. A questão do próximo
Morte do próximo?
Um psicanalista italiano, Luigi Zoja, num livro com título forte e emblemático, A morte do próximo[10], acentuou o facto da sociedade tecnológica eliminar cada vez mais a dimensão da proximidade, criando sempre maior distância entre os seres humanos. Ele fala da “morte do próximo”, entendendo como próximo na esteira da tradição judaica e evangélica, “o outro que te está ao lado…, o teu próximo, o que te está perto, sobre quem podes pousar a tua mão”[11] Assim, é essencial ao homem o outro homem. Se a função do outro pode ser substituída hoje, em boa parte, pelo computador, o que não pode ser substituída é a sua presença. “O afastamento dos outros provoca uma privação que é um verdadeiro dano psíquico. O homem só, encontra a depressão; e, num círculo vicioso, o homem deprimido é um homem a que faltam a força e o impulso para ir ao encontro do próximo” .[12]
Mas a ausência de proximidade não só causa danos psíquicos, mas também morais. A interposição da técnica torna sempre mais precário também o sentido ético, particularmente o sentido do seu sofrer, a consciência do efeito que a minha ação provoca no outro. “Segurando um bastão posso sentir se toco ligeiramente o meu próximo ou se o firo, fazendo-lhe mal. Mas se segurar os comandos de um avião posso bombardear massas de cidadãos sem advertir nada do seu sofrimento”[13]. Comentando o escândalo da Enron, Zoja observa: “A Enron produziu escândalos também porque os seus líderes não produziram realmente nada. Ocupavam-se com contratos, comprando, vendendo, administrando. Financiando, promovendo, expandindo o setor energético. Estando mais longe do trabalho humano, está-se mais longe do respeito pelos homens. Isto leva a ser mais tentados pela especulação. À medida em que, graças às técnicas, o ganho ilícito se aproxima, enquanto as vítimas se tornam distantes e virtuais, é-se mais tentado também pelo crime”[14] Urge então redescobrir que só a presença real do outro nos torna humanos e que só o contacto com os outros nos coloca também em contacto com nós mesmos. A criação de distância com os outros torna-se, de facto, distanciamento entre nós e nós mesmos, entre nós e o nosso corpo, entre nós e os ‘ nossos sentidos, entre nós e a nossa alma. Tornando-nos estranhos aos outros também nos tornamos cada vez mais estranhos a nós mesmos. Também isto diz a importância daquele operar a caridade que acontece entre pessoas que podem olhar-se cara a cara (a caridade impessoal é a filantropia) e que envolve o corpo (e, portanto, a alma) dos protagonistas desta partilha. Zoya pode assim concluir: “Em qualquer lugar, em qualquer época, a distância sempre foi um obstáculo para o amor: porque deveria ser diferente a nossa? Pode-se verdadeiramente amar ou apenas conhecer o que está distante? E o conhecimento por si só permite-me, pelo menos, ser justo? Não há ainda nada que o demonstre”[15]
A caridade: fazer-se próximo
Se é verdade que cada homem, cada “outro”, deve ser considerado próximo por nós, é ainda mais verdade que, de acordo com a parábola do Samaritano (Lucas 10, 25-37), eu mesmo sou chamado a fazer-me próximo. Kierkegaard afirma: “Cristo não fala de conhecer o próximo, mas de tornarmo- nos nós mesmos o próximo: … o Samaritano não sentiu que a vítima era o seu próximo, mas que ele era o próximo da vítima”[16] O próximo aparece sendo a responsabilidade pessoal, ação, e ação sobre si mesmo.
Então: o próximo? É a vocação a que eu sou chamado. O próximo? Não diz respeito ao outro, mas a mim mesmo. O próximo? Não é uma condição, mas uma ação. “Fez-se próximo” (Lc, 10, 34) diz a parábola. O próximo não é simplesmente aquele que está perto de mim fisicamente, mas é disponibilidade para se fazer vizinho, para tornar-se vizinho, para mudar de onde está para ir para lá onde o outro está. A encarnação foi Deus fazer-se próximo da humanidade, mostrando assim o seu amor. A proximidade, repito, não é um estado, mas uma ação. É antes de mais uma ação sobre si mesmo, na qual eu decido fazer alguma coisa de mim. E decido-o sabendo que o único poder que eu tenho e o único poder que nós verdadeira e legitimamente temos, é sobre nós mesmos. Esse é o único poder a ser implementado. Embora seja um dos que mais evitamos, despoletando inúmeros jogos de poder sobre os outros.
À pergunta do doutor da Lei ‘”Quem é o próximo?’ Jesus responde contando a parábola do samaritano. O próximo já não existe. Próximo torna-se. Próximo não é aquele que já tem comigo relacionamentos de sangue, de parentesco, de negócios, de afinidade psicológica. Próximo torno-me eu mesmo no ato no qual, diante de um homem, também diante do estrangeiro e do inimigo, decido dar um passo que me avizinha, me aproxima”[17]
Si (mesmo) como um outro
A caridade exige um trabalho sobre si mesmo. ” Pelos teus desejos, aprende a conhecer os do próximo e reflete sobre tudo aquilo que fazes ” (Sir 31,15). No texto em latim da Vulgata a passagem é: Intellige quae sunt proximi tui ex teipso. A inteligência do próximo exige inteligência de si. Deve ler-se dentro para compreender o outro, ouvir o sofrimento do outro é possível quando ouço e reconheço o meu. O próximo é, ao mesmo tempo, o outro e eu mesmo. Jesus, diante da pergunta do doutor da lei “quem é o meu próximo?” contou uma história. Com a história, com a narração, tomou o doutor pela mão e levou-o a sair de si e a imaginar: e o doutor da lei imaginou bem. Contou a história de um homem ferido, espancado e deixado meio morto e de algumas pessoas que lhe passaram ao lado: algumas foram passando para o outro lado do caminho, uma avizinhou- se. A narração suscita empatia com o homem ferido, provoca a identificação com quem está mal, com a sua angústia, com o seu desapontamento ao ver afastarem-se pessoas que deveriam e poderiam tê-lo ajudado; depois, tenta-se adivinhar o alívio ao perceber um que o ajuda e o interlocutor de Jesus é capaz de dar a resposta correta: a história narrada leva-o a um país diferente do seu, fá-lo sair dos seus dogmas, das suas seguranças; ele não se lembra mais da pergunta que colocou para se justificar, agora a história já o tomou por dentro, humanizou-o. Levou-o a tomar contato com uma parte de si mesmo que antes escondia atrás das questões e casuísticas legais. Agora, não lhe resta senão um último passo a dar. E Jesus indica-lho: “Vai e faz tu também o mesmo” (Lc. 10, 37). A história narrada funcionou como um espelho. Mas, como espelho que devolve outra imagem de si mesmo, a imagem de alguém que pode sentir compaixão. Neste ponto, entendemos como as diferentes exegeses do mandamento “Ama o teu próximo como a ti mesmo” podem encarnar no doutor da lei:
ama o teu próximo que é como tu mesmo;
ama o teu próximo como te amas a ti mesmo;
ama o teu próximo, porque ele é tu mesmo.[18]
Somente quem reconhece o outro em si mesmo, quem reconhece, para citar Ricoeur, a si mesmo como um outro[19], pode também fazer-se próximo, fazer-se próximo de quem lhe está diante.
O próximo é aquele que aceito ver e escutar
A caridade significa dar voz a quem não tem voz, mas também dar visibilidade a quem é invisível. O próximo existe quando aceito vê-lo e encontrá-lo e eu faço-me próximo quando aceito ver o outro na sua necessidade ou, melhor, na sua unicidade. A parábola do samaritano requer a capacidade de ver. “Viu-o e teve compaixão”.
“O samaritano torna-se próximo não porque filantropo, mas porque o seu coração se parte. À vista daquele espetáculo horrível, as entranhas explodem em pedaços. O termo “misericódia” é uma incruenta tradução do evangélico ‘esplanchnísthe’. A palavra do corpo precede cada logos e cada ação consciente. Não há aí amor em nenhum sentido, que seja ‘puro’ do perturbador deste golpe. O meio morto toca o coração do samaritano e ele deve ‘responder-lhe’ porque somente assim pode ‘responder’ à sua própria ferida. Tornando-se próximo daquele homem abandonado, o samaritano faz-se próximo de si, derrama azeite e vinho na laceração que o seu próprio coração sofreu”[20]
A dor do homem ferido atinge profundamente o samaritano, que se torna, no seu próprio corpo,
caixa de ressonância da dor do outro e responde a um tal “chamamento”, tornando-se próximo
também das suas dores. Fazendo-se próximo do ferido, o samaritano faz-se próximo também da sua própria dor, faz-se próximo de si mesmo .
O outro, o desconhecido, o estrangeiro, pede para ser visto adequadamente. “Aproxima-te, diz o estrangeiro. A dois passos de mim, estás ainda muito longe. Vês-me por aquilo que és tu e não por aquilo que eu sou”[21] O outro, o estrangeiro, o pobre é invocação de proximidade. Ele diz: “Vem, faz-te próximo, estás muito longe”. Sim, fazer-se próximo é perigoso, é arriscado. A dificuldade da caridade também está no facto de que temos medo do outro. E vemo-lo com a tela dos preconceitos, das etiquetas, das crenças, das pré-compreensões que temos sobre ele. Quando o outro é visto assim, na verdade ele é invisível, é desfigurado, é violentado pelo outro olhar que vê somente o que já crê saber sobre ele. O outro é coisificado.
A humilhação de que fala Margalit é mesmo a cegueira do humano que está no homem, a incapacidade de reconhecer o lado humano das pessoas. Ver o outro é condição essencial para fazer-se seu próximo. O olhar que vê o outro é reconhecido por Lévinas como uma forte intensidade ética: “A epifania do outro é, ipso facto, a minha responsabilidade relativamente a ele: a visão do outro é já uma obrigação relativamente a ele”[22][23].
Agora, até mesmo o sacerdote e o levita vêem o ferido, mas passam para o outro lado. Talvez vejam, mas não escutam, não dão tempo ao outro, não querem perder tempo. Talvez ambos se recusem a ouvir a sua vulnerabilidade, porque “só um eu vulnerável pode amar o seu próximo.”[24] O samaritano aceita ver e ouvir a dor do outro, até fazer ressoar em si, na vibração da compaixão, a voz do sofrimento do outro. Este é o modo de ouvir de Deus. Esta deve ser, também, a maneira de sentir da igreja diante das graves responsabilidades a que o hoje histórico e o “evangelho eterno” (Ap. 14, 6) a chamam. Aqui, hoje, em Portugal.
[1] Bento XVI, Carta Encíclica Deus caritas est (25.12.2005), n. 25, in Insegnamenti di Benedetto XVI1/2005, Libreria Editrice Vaticana, Città dei Vaticano 2006. p. I 109; Enchiridion Vaticanum 23, Edb, Bologna 2008, p. 1061. nr.1576.
[2] P. K.emp, L ‘Irremplaçable. Une étique de la technologie, Cerf, Paris 1997, cit. in J.-C. Guillebaud, Le principe d’humanité, Seuil, Paris 2001, p. 505.
[3] A. Margalit, La società decente, a cura di Andrea Villani, Guerini e Associati, Milano 1998
[4] M. Zanichelli, «Oltre il discorso dei diritti umani. Il significato normativo delia prossimità», in lustitia 1 (2009), p. 35. A expressão em itálico é citação de P. Ricoeur, La persona, Morcelliana, Brescia 1997, p. 47.
[5] Introduzione», in Le immagini bibliche. Simboli, figure retoriche e temi letterari delia Bibbia (a cura di L. Ryken, J. C. Wilhoit. T. Longman III), San Paolo, Cinisello Balsamo (Milano) 2006, p. XXI.
[6] Cf. A. Schenker, La Loi de l’Ancien Testament, visage de l’humain, Lumen Vitae, Bruxelles 1997.
[7] Sobre este tema, mais amplamente: L. Manicardi, Accogliere lo straniero. Per una cultura dell’ospitalità, Qiqajon, Bose 2002.
[8] A. J. Heschel, II messaggio dei profeti, Borla, Roma 1981, p. 87.
[9] Ivi, p. 88.
[10] L. Zoja, La morte deiprossimo, Einaudi, Torino 2009.
[11] Ivi, p. 3.
[12] Ivi, p. 13.
[13] Ivi,pp. 20-21.
[14] Ivi, p. 24. A Enron Corporation foi uma das maiores multinacionais norte-americanas a operar no campo da energia. A sua falência em 2001, após anos de crescimento e expansão vertiginosos, representa provavelmente o mais colossal crack da história empresarial mundial, a ponto de ser definido como “o 11 de setembro dos mercados” (Luigi Spaventa). Para a falência da Enron contribuiu um management extremamente despudorado e que, durante anos, alterou os balanços empolando os lucros, fugindo aos impostos através de uma rede de sociedades criadas em “paraísos fiscais” (das quais 692 sediadas nas ilhas Cayman), descuidando o registo de diversas transações para permitir a subestimação do débito, praticando uma verdadeira arte de “privatizar os lucros” e “socializar os prejuízos” e de que os dependentes foram as primeiras vítimas ao não só perderem o trabalho mas também ao verem reduzido a zero o valor dos seus fundos de pensões da empresa. Para a falência concorreram, para além da falta de um rigoroso controle de contas enquanto a Enron pôde usufruir da cumplicidade da sociedade Arthur Andersen, especializada em certificação de balanços; e ainda a cumplicidade das bancas e o apoio de numerosos políticos (entre os quais Bush pai e filho) que distribuíam favores e proteção em troca de financiamentos e ajudas económicas.
[15] Ivi, pp. 127-128
[16] S. Kierkegaard, Gli atti deWamore, Introduzione, traduzione e note a cura di Cornélio Fabro, Rusconi, Milano 1983, p. 168.
[17]C. M. Martini, Farsi prossimo. La carita, oggi, netla nostra società e nella Chiesa, Piano pastorale 1985-1986, Centro Ambrosiano di Documentazione e Studi Religiosi, Milano 1985, p. 52.
[18] Cf. E. Bianchi, «Farsi prossimo con amore», in E. Bianchi – M. Cacciari, Ama il prossimo tuo, il Mulino, Bologna 2011, pp. 9-82.
[19] P. Ricoeur, Sé come un atiro, Jaca Book, Milano 1993.
[20] M. Cacciari, «Drammatica delia prossimità», in Bianchi – Cacciari, Ama ilprossimo tuo, p. 93.
[21] Cf. L. Manicardi, // volto dei sofferente, Qiqajon, Bose 2004
[22] E. Jabès. Uno straniero con, sotto il braccio, un libro dipiccolo formato, SE, Milano 1991, p. 98.
[23] E. Lévinas, Quatre lectures talmudiques, Les Éditions de Minuit, Paris 1968, pp. 103-104.
[24] E. Lévinas, Di Dio che viene all’idea, Jaca Book, Milano 1983, p. 115.
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