15 de junho – domingo da Santíssima Trindade
O coração do cristianismo
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele. Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita n’Ele já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus. (João)
O texto do Evangelho é retirado do célebre diálogo noturno de Jesus com Nicodemos, que aparece na primeira estadia de Jesus em Jerusalém. Esse longo diálogo tem duas leituras justapostas: a leitura que salta à vista, e que é uma conversa entre dois homens, ambos crentes da religião judaica (Jesus e Nicodemos); e a leitura que se esconde por detrás desta conversa e que é o confronto das grandes diferenças teológicas já entre duas religiões distintas: o judaísmo “oficial” e o cristianismo “oficial”.
Nicodemos era um chefe judaico. Fazia parte do Sinédrio, uma espécie de “Assembleia da República” dos judeus, com poderes legislativos, tanto do foro civil como religioso (embora a Judeia fosse um território ocupado pelos romanos, que sempre supervisionavam e limitavam esses poderes). Nicodemos, que aparece sempre caraterizado como pessoa honesta e bondosa, representa aqui o judaísmo oficial (do Sinédrio), na sua vertente mais pura e santa, não aquele judaísmo que condena Jesus à morte, mas aquele que oferece a Jesus a caridade de um enterro digno (cf. Jo 19, 39). Do lado do cristianismo, já como religião distinta do judaísmo, o representante é o próprio Jesus de Nazaré. Dos dois lados desta conversa entre religiões, temos os melhores representantes oficiais das mesmas!
Para quem está pouco familiarizado com a literatura bíblica, pode parecer estranho dizer que o que S. João quer evidenciar num texto em que ainda é o próprio Jesus a falar (e no início da sua vida pública) é já a doutrina oficial da religião a que deu origem! Mas neste caso até são várias as passagens em que as palavras de Jesus nos reencaminham para esta segunda leitura escondida, a do confronto entre a Igreja nascente e o judaísmo; por exemplo, quando Jesus diz a Nicodemos “nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho” (Cf. Jo 3, 11), parece inequívoco que este é o discurso dos apóstolos depois da experiência pascal da ressurreição.
Então, resumindo, temos aqui a afirmação das grandes diferenças entre o judaísmo oficial e o cristianismo oficial. E dessas diferenças, a Igreja escolheu para nos servir como Palavra de Deus hoje, nesta Solenidade da Santíssima Trindade, a mais profunda e radical de todas: o reconhecimento de Jesus de Nazaré como o Filho eterno de Deus, enviado pelo Pai ao mundo para salvação dos homens e mulheres de todos os tempos e lugares. É esse o coração do cristianismo! Exatamente o que para o judaísmo é escândalo.
Aqui vale a pena lembrar um dos mais belos e profundos textos de Bento XVI, curiosamente tendo como referência esta conversa de Jesus com Nicodemos: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus caritas est, 1). A pergunta que fica é sempre esta: e que novo horizonte (“nascer de novo”, disse-lhe Jesus) deu Nicodemos à sua vida depois deste encontro com Jesus?
E aqui se fundamenta a segunda parte do evangelho, relativa à condenação de quem não acredita. Crer, no cristianismo, é dar à vida um novo horizonte, que nasce do encontro pessoal, intransmissível, com uma única Pessoa: Jesus de Nazaré. Para o cristianismo, o que está em causa não é uma crença teórica em Deus, não é o cumprimento de um conjunto de normas morais, não é uma visão religiosa do mundo… Para o cristianismo, crer é voltar à vida por outro caminho sempre que nos encontramos pessoalmente com Jesus de Nazaré, como fizeram os magos depois daquele encontro logo na altura do seu nascimento. Quem, tendo-se encontrado com Jesus, se recusa a mudar o seu horizonte, se recusa a nascer de novo, já está condenado, porque recusa o horizonte do próprio Deus: na verdade, Ele, aquele nazareno que conversou uma noite com Nicodemos sobre coisas de religião, é o Filho Unigénito de Deus!
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