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Esta mania de pegar em pedras…

«Eu sou o Bom Pastor. O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas. O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas, logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge, enquanto o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário não se preocupa com as ovelhas. Eu sou o Bom Pastor: conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-Me, do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai; Eu dou a vida pelas minhas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir; elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só Pastor. Por isso o Pai Me ama: porque dou a minha vida, para poder retomá-la. Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente. Tenho o poder de a dar e de a retomar: foi este o mandamento que recebi de meu Pai». (João)

Esta passagem do Evangelho de S. João integra-se num crescendo de controvérsia entre Jesus e os fariseus, depois da cura do cego de nascença. O ambiente fica pesado porque Jesus, primeiro subtilmente e depois declaradamente, acusa os fariseus de serem cegos e de estarem em pecado por causa da sua cegueira, e estes, naturalmente, reagem mal. É a partir daí que João, primeiro com a imagem da “Porta” e depois com a imagem do “Bom Pastor”, conduz o seu relato até à soleníssima declaração de Jesus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30). É uma declaração de tal modo grave, profunda e inequívoca, que, diz o texto, “então, os judeus voltaram a pegar em pedras para o apedrejarem” (Jo 10, 31).

E quem é o Pai? Bem, o Pai é Deus, alguém que está para além da nossa compreensão e ao qual só acedemos por imagens, ou por conceitos abstratos, por exemplo, é o Criador, é o Misericordioso, é o Oleiro… Entre esse largo conjunto de imagens, havia uma muito comum no antigo Testamento: a do Pastor. Ora, é a essa imagem do pastor que João recorre para nos conduzir até à compreensão da tal solene afirmação de Jesus. “Eu e o Pai somos um”.

E recorre a esta imagem por uma razão simples: é que a ideia do pastor traz implícita a ideia do rebanho. Ser pastor exige haver ovelhas, e haver ovelhas em interação: o pastor conhece as ovelhas e as ovelhas conhecem o pastor. Ora o rebanho, também é claro no antigo Testamento, é o povo de Deus.

Mas mais: João recorre neste evangelho basicamente a um texto do antigo Testamento onde aparece a imagem de Deus como Pastor (“Eu próprio cuidarei do meu rebanho e velarei por ele” – Ez 34, 11), mas sobretudo onde é viva e sucessivamente afirmado que o rebanho (o povo) anda disperso, em debandada, que vagueia pelas montanhas e colinas, porque ninguém se preocupa com as ovelhas nem as vai procurar: “os meus pastores não se preocupam com o meu rebanho” (cf Ez 34, 1-16). Ou seja, João recorre a um texto carregadíssimo de acusações aos pastores!

Portanto, se excluíssemos deste relato a pessoa de Jesus, e nos limitássemos ao antigo Testamento, o que teríamos aqui seriam três entidades diferentes:
1. Um povo, que seria um rebanho, mas que anda disperso, como ovelhas abandonadas.
1. Os chefes religiosos que abandonaram o povo, embora continuem a apresentar-se como os seus pastores.
2. Deus, que se predispõe, Ele próprio, a vir apascentar as ovelhas em boas pastagens (Ez 34, 14).

Agora, se aplicarmos isto ao tempo de Jesus, é fácil: o povo continua disperso; os fariseus continuam a considerar-se os bons pastores do povo, mas como estão cegos, transformaram-se em mercenários que abandonaram as ovelhas; Deus continua em aberto com a sua Promessa de “ele próprio” vir apascentar as ovelhas. E, por isso, quando Jesus reivindica ser o Bom Pastor, está a reivindicar uma ação que é do próprio Deus, ou seja, está a reivindicar ser o Messias. Até aqui, mal, mas ainda suportável para os judeus, porque havia essa possibilidade real de Jesus ser o Messias: “Até quando nos deixarás na incerteza? Se és o Messias, di-lo claramente” (Jo 10, 24). E Jesus diz claramente: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30).

Jesus dá-lhes a verdade com a clareza que eles exigem…, e eles põem-se a atirar-lhe pedras!