Notícias

A Cáritas no Magistério Pontifício

Texto publicado por Corintios XIII, n.117-118, Janeiro-Junho de 2006 (reprodução do texto publicado em 1982)

A CÁRITAS NO MAGISTÉRIO PONTIFÍCIO

 

 

José Maria Guix Ferreres (*)

 

 

            Nestas poucas páginas, pretendo recolher as linhas mestras do esboço que os últimos papas fizeram sobre a Cáritas, e destacar as orientações com que os mesmos a incentivam na sua caminhada.


As fontes para este apontamento, somente esboçado, são:


a) Em primeiro lugar, os discursos pronunciados pelos Papas nalgumas Assembleias Gerais da Caritas Internationalis:

            – João XXIII, na V Assembleia Geral (27-VII-1960)

            – Paulo VI, nas VII (10-IX-1965), VIII (9-V-1969), IX (12-V-72) e X (17-V-1975) Assembleias Gerais.

            – João Paulo II, na XI Assembleia Geral (28-V-1979).


b) Também são de muito valor outros quatro discursos papais, totalmente relacionados com a Cáritas:

            – Paulo VI, alocução ao Comité Executivo da Caritas Internationalis (29-XI-1972)

            – Paulo VI, alocuções à Cáritas Italiana (28-IX-1972 e 26-IX-1973)

            – João Paulo II, alocução à Cáritas Italiana (21-IX-1979)


c) A estes documentos pontifícios é preciso acrescentar, pelo seu interesse:

            – A carta do cardeal Cicognani, Secretário de Estado, a monsenhor Rodhain, Presidente da Cáritas Internationalis (28-XI-1976)

            – A carta do cardeal Villot, Secretário de Estado, a monsenhor Lorscheider, Presidente da Caritas Internationalis (17-X-1974)

            – A homilia de monsenhor Benelli, Substituto da Secretaria de Estado, aos participantes na X Assembleia geral da Caritas Internationalis (16-V-1975).


d) Finalmente, e prescindindo de outras muitas alocuções de menor importância, há dois discursos de Paulo VI, nos quais se faz uma referência densa e cheia de intenção à missão da Caritas Internationalis – um dirigido ao Comité do “Programa Mundial para a Alimentação” (20-IV-1967) – e outro à Comissão Pontifícia “Justiça e Paz” (20-IV-1967) – e alguns outros documentos de Paulo VI e de João Paulo II, nos quais, apesar de não se dirigirem à Cáritas e de não falarem directamente sobre ela, se encontram princípios e orientações muito valiosas e válidas para a sua actuação; por exemplo:

            – Discurso de Paulo VI aos participantes do VII Congresso da Associação Nacional de Delegações de Assistência (16-V-1964).

            – Discursos de João Paulo II aos Juristas Católicos de Itália (25-XI-1978), à UNEBA (7-IV-1979) e aos membros do “Cor Unum” (5 e 23-XI-1981).

            – Carta de João Paulo II aos Chefes de Estado dos países signatários da Acta de Helsínquia (1-IX-1980).


            Como é fácil imaginar, estes textos são, ordinariamente e na sua maioria, de carácter parenético: neles o Papa felicita os membros da Cáritas pelo trabalho que realizam, exorta-os e anima-os a prosseguirem com entusiasmo a obra iniciada… Mas, como poderemos observar, neles aparecem também – ainda que de maneira solta – elementos essenciais relativos à estrutura e organização da Cáritas, aos seus objectivos, ao seu campo de acção…, elementos estes que interessa recolher, sintetizar e sistematizar na primeira parte desta exposição. Na segunda parte apontaremos as pistas pelas quais devem avançar as relações entre a Cáritas e os Poderes Públicos. Finalmente, na terceira parte atenderemos de modo especial a um conjunto de pontos que, percebe-se, preocupam os Papas e os altos organismos directivos da Igreja e estão intimamente relacionados com a vida da Cáritas, particularmente com a Caritas Internationalis.


Natureza e Acção da Cáritas à luz da Doutrina Pontifícia


  1. A Cáritas joga um papel de primeira importância na Igreja nos nossos dias: é “o instrumento privilegiado da caridade da Igreja” (Paulo VI, 9-V-1969).


  1. É “como uma árvore bem estruturada de ramificações múltiplas”. Consta


    1. das Cáritas Diocesanas, que “a nível local são a expressão e o instrumento da caridade da grande comunidade cristã presidida pelo bispo e, por ele, de todas as comunidades eclesiais, paroquiais ou outras ligadas a elas”;
    2. das Cáritas nacionais, que “têm um papel de primeira categoria para animar e coordenar a actividade caritativa, em estreita união com as Conferências Episcopais”;
    3. da Caritas Internationalis, confederação a nível internacional das Cáritas nacionais, “com o fim de estudar, estimular e harmonizar os projectos das associações membros”. (João Paulo II, 28-V-1979)


  1. Tem um carácter principalmente operativo (Paulo VI, 20-IV-1976), ainda que não possa omitir nunca na sua acção “a reflexão necessária para o exercício de uma autêntica caridade evangélica”” (id., 9-V-1969).


  1. O campo específico da competência da Cáritas dentro da Igreja é “a caridade pronta e eficiente”. Para isso, deve “estar à escuta das necessidades e das misérias, ajudar as pessoas e as colectividades a fraternizar, a partilhar e a ampliar os espaços da caridade” (Paulo VI, 17-V-1975). Tal é “a sua identidade, a sua originalidade” (ib.). Esta acção, desempenhada com fecundidade crescente desde o seu nascimento como organismo internacional em 1951, é insubstituível do ponto de vista pastoral. Se, por hipótese, a Cáritas decidisse afastar-se deste objectivo, seria necessário criar outra instituição que assumisse esta missão, a nível local, nacional e internacional. (Benelli, 16-V-1975). Para ser fiel à sua identidade, a Cáritas “não pode transformar-se numa Comissão de Justiça e Paz…, ou num Comité de Promoção Humana, ou num órgão de sensibilização para problemas sindicais, cívicos e políticos” (Benelli, 16-I-1975; Villot, 17-X-1974).



  1. O campo de acção da Cáritas é muito vasto. Deve atender às vítimas da “guerra, da fome, da ignorância, da doença, da insegurança social” (Paulo VI, 19-V-1969). Deve estar aberta às situações de necessidade e de miséria”, “às situações contrárias à justiça e à ordem social”, “às situações de subdesenvolvimento” (ib.). O seu olhar deve centrar-se “nos pobres, nas vítimas e nos oprimidos” (Benelli, 16-V-1975). Numa palavra, deve dilatar “o seu coração e a sua acção à dimensão das imensas necessidades do mundo” (Paulo VI, 20-IV-1967).


  1. Ao seu nível internacional, a Cáritas (Caritas Internationalis) é reconhecida como a instituição operativa da igreja que, além de realizar os mais diversos programas, coordena e representa as diversas obras de caridade e assistência reconhecidas pelos Episcopados responsáveis. É “tarefa insubstituível” da Cáritas Internationalis “coordenar a acção caritativa a nível internacional para poder manifestar com rapidez e eficácia a solidariedade dos católicos com os irmãos necessitados, especialmente com os dolorosamente afectados por alguma catástrofe súbita” (João XXIII, 27-VII-1960). Esta coordenação implica “estudar, estimular e harmonizar os projectos das associações membros” (João Paulo II, 28-V-1979; cfr. também Paulo VI, 10-V-1965 e 20-IV-1967).



  1. Assegurando sempre a devida atenção ao seu campo específico (acima, 4), a Cáritas não deve ficar-se fechada no campo da pura assistência e beneficência. Pode e deve investigar as causas das injustiças e diligenciar os requisitos da promoção humana; numa palavra, a sua “acção deve orientar-se para um processo de desenvolvimento integral” (Benelli, 16-V-1975).


  1. “As Cáritas nacionais – que são os membros da Caritas Internationalis – desempenham um papel de primeira importância… na animação e coordenação da acção caritativa e em estreita vinculação com as Conferências Episcopais” (João Paulo II, 21-IX-1979). É preciso ter presente que a acção da Cáritas é eminentemente comunitária e eclesial: afecta todo o Povo de Deus e, teológica e pastoralmente, encontra a sua unidade por excelência na comunidade diocesana presidida pelo Bispo. Evidentemente, o cristão deve oferecer testemunho de caridade pessoalmente e ninguém está dispensado desta obrigação. João XXIII, na Mater et Magistra (nº 120), escreveu que “sempre ficará aberto um vasto campo para o exercício da misericórdia e da caridade cristã por parte dos indivíduos”. Mas, por outro lago, é extremamente importante que os cristãos dêem um testemunho colectivo e que as suas iniciativas estejam devidamente coordenadas. Pede-o a eficácia, e pede-o também a transparência comunitária e eclesial do testemunho. Isto é, precisamente, o que a Cáritas faz. (cfr. João Paulo II, 28-V-1979)



  1. A Cáritas deve evitar o paternalismo e associar à sua acção promocional as próprias pessoas para as quais dirige o seu trabalho de promoção (cfr. Paulo VI, 9-V-1969; João Paulo II, 23-XI-1981).


  1. A acção caritativa da Cáritas continua a ser válida, actual e necessária. Não é fácil trabalhar neste delicado sector da vida pastoral: hoje a caridade está sempre constituída arguida; vivemos numa sociedade que é muito mais sensível à aplicação da justiça que ao exercício da caridade; por outro lado, a Segurança Social e a assistência pública cobrem parte do campo que os séculos passados tinham reservado tradicionalmente para a acção caritativa da Igreja. Apesar de tudo isto, a caridade não perdeu a sua actualidade e a acção caritativa da Igreja continua a ser necessária no mundo contemporâneo, caracterizado por uma organização técnica e social crescente. A caridade bem entendida será sempre a expressão privilegiada da vida cristã, o sinal por excelência dos seguidores de Cristo. A caridade é e será sempre necessária, pelo menos como estímulo e complemento da justiça e também, seguramente, com uma função mais ampla e um raio de acção mais alargado. E, porque não se trata de um amor de palavras, mas de actos (cfr. 1Jo 3,18), tal caridade deve manifestar-se em obras concretas de assistência, de solidariedade, de promoção, de serviço, etc., que exigem uma estrutura e uma organização eficazes (cfr. João XXIII, 27-VII-1960; Paulo VI. 10-IX-1965, 28-IX-1972 e 20-IX-1973; João Paulo II, 23-XI-1981).


  1. Algumas vezes foi pedido ou sugerido que a Cáritas mudasse de nome por causa da conotação negativa que a palavra tem nalguns ambientes. Contrariamente, João Paulo II, depois de louvar o “nome belo” que a Cáritas tem, porque “é a palavra chave do Evangelho”, disse: “Não permitamos que a palavra ou a realidade da caridade perca o seu valor. Esta não é só o fruto de uma piedade sentimental ou passageira” (20-V-1979). Então, o que é preciso fazer é recuperar toda a riqueza que encerra esta palavra com o testemunho inequívoco da acção. O nome da Cáritas deve ser um ideal e, ao mesmo tempo, um estímulo permanente. A Cáritas deve ser a vivência institucionalizada da frase de S. Paulo “caritas Christi urget nos” (2 Cor 5,14), que não nos deixa ficar indiferentes diante do que jaz exausto à beira do caminho (cfr. Lc 10, 31-32) e obriga a ter piedade das necessidades da multidão (cfr. Mt 15,32).

Somos nós os que devemos devolver à palavra Cáritas toda a riqueza imensa que encerra. Não podemos permitir que quem nos vê pense que, na nossa boca, a caridade, a participação no desenvolvimento e a justiça não são mais do que palavras para tranquilizar a consciência dos ricos e para fazer ter paciência aos pobres. A Cáritas deve aparecer sempre como a expressão e o instrumento da caridade na comunidade eclesial ao serviço dos pobres e dos oprimidos, como o intermediário que faz com que a mão do que dá e a mão do que recebe se encontrem.

Em definitivo, a Cáritas – tanto no nome como no conteúdo – continua a ser uma instituição válida da Igreja, conquanto nós mesmos não adulteremos a sua missão (cfr. João Paulo II, 22-V-19799 e 23-XI-1981).


  1. Não devem contrapor-se – nem dentro da Igreja, nem dentro do campo da acção da Cáritas – as medidas assistenciais e as acções a favor da promoção e do desenvolvimento. As duas devem avançar ao mesmo ritmo. A controvérsia do socorro imediato ou do socorro diferido (“há que voltar-se já para a ajuda aos necessitados ou é preciso primeiro mudar as estruturas?”) deve ser superada por uma conjugação harmoniosa de ambas as perspectivas.

A Cáritas não pode dar-se por tranquila com a simples satisfação das necessidades prementes, mas deve trabalhar para modificar as causas que estão na raiz destas necessidades. Deve preocupar-se pelo hoje e pelo amanhã. Deve contribuir para criar para amanhã, na medida do possível, condições de vida que permitam evitar ou superar as misérias endémicas de hoje. Isto exige anunciar e ajudar a nascer a libertação no seu sentido mais integral – tal como a anunciou e a levou a cabo Jesus; exige promover o homem – o homem todo e todos os homens; exige, em muitos caso, modificar as estruturas que impedem o homem de o ser plenamente e abrem caminho à marginalização; exige promover leis justas e criar relações humanas mais satisfatórias… A Cáritas não pode ser alheia nem indiferente a todas estas coisas, mesmo quando algumas sejam missão específica – e, por isso, mais directa – de outras organizações; para realizar tudo isto, a Cáritas deve colaborar positivamente com os outros, na medida das suas possibilidades, sem esquecer o seu campo específico (“a caridade imediata e eficiente”).

De facto, a preocupação pela promoção humana ou por um amanhã melhor não dispensa a Cáritas de atender hoje mesmo às necessidades vitais que não podem esperar; a Cáritas não pode menosprezar a caridade para com os pobres de hoje sob o pretexto de preparar um regime social mais justo para amanhã. No seu afã de preparar um amanhã melhor, não pode fechar os olhos diante de casos pessoais de apuro, de situações concretas de angústia, de certas categorias de marginalizados, de determinadas vítimas das injustiças ou de catástrofes… A Cáritas deve ter como “seu primeiro objectivo, como sua vocação singular, a preocupação constante de encontrar esses pobres, de ajudá-los, de sensibilizar os outros para a sua presença” (João Paulo II, 28-V-1979).

Esta preocupação pelos necessitados de hoje está na linha do ensinamento clássico da doutrina social da Igreja, que proíbe sacrificar a geração presente em nome do bem que daí pudesse resultar para as gerações futuras (cfr., por exemplo, a carta de Mons. Dell’Aqua à XLII Semana Social de França; a alocução de Pio XII às ACLI, no encerramento 7-VI-1957; a Mater et Magistra n. 69 e 79; etc.).

(Para todo este epígrafe nº 12 são muito importantes os seguintes documentos: João XXIII, 27-VII-1960; Paulo VI, 17-V-1975; João Paulo II, 28-V-1979 e 5-XI-1981; Villot, 17-X-1974; Benelli, 16-V-1975).


  1. A acção da Cáritas não se esgota com a distribuição de bens ou na prestação de ajuda aos irmãos necessitados, no esforço em favor da promoção e do desenvolvimento. É muito importante a sua função pedagógica para que a comunicação cristã de bens não seja somente fruto de uma emoção passageira e contingente, mas sim a consequência lógica de um progresso na compreensão e vivência da caridade fraterna que, se é verdadeira, se traduz necessariamente em gestos concretos de comunhão com os que sofrem alguma necessidade.

O processo experimentado pelo Povo de Deus no espírito do Concílio Vaticano II, não é concebível sem uma maior tomada de consciência, por parte de toda a comunidade cristã, da sua própria responsabilidade na descoberta e atenção das necessidades dos seus membros. A caridade será sempre para a Igreja a melhor demonstração da sua credibilidade diante do mundo (cfr. Jo 13, 35). A Cáritas deve ter um importante papel neste esforço para ajudar a tomar consciência e a reflectir sobre o lugar da caridade fraterna na comunidade eclesial.

Daqui se segue a necessidade de “uma catequese que ilumine cada vez melhor os fiéis sobre o nexo estreito que existe entre o anúncio da palavra de Deus, a sua celebração na Liturgia e a sua tradução concreta num testemunho de caridade comprometida na vida” (João Paulo II, 21-IX-1979). Os cristãos dos primeiros tempos da Igreja tiveram uma consciência muito viva deste nexo, como mostram as diversas fontes neo-testamentárias e os Padres da Igreja (cfr. Act 2,42 ss; 1 Cor 11, 17 ss; Tg 2,1 ss; Didaché 14, 1 ss) e muito especialmente as colectas que S. Paulo mandou fazer, ele que, apesar do seu intenso trabalho apostólico consagrado à evangelização, teve a preocupação de que as Igrejas por ele fundadas recolhessem esmolas para ajudar a Igreja mãe de Jerusalém (Act. 4, 32; 11, 27-30; 24, 17; Gal 2, 10; 1Cor 16, 1-4; 2Cor 8-9; Rom 15, 25-31).

(Cfr. João XXIII, 27-VII-1960; Paulo VI, 10-IX-1965, 9-V-1969 e 12-V-1972: João Paulo II, 28-V-1979 e 21-IX-1979; Benelli, 16-V-1975).

 

  1. A Cáritas deve superar os métodos empíricos e imperfeitos presentes na acção caritativa da Igreja em tempos passados. No cumprimento da sua missão deve aproveitar os progressos técnicos e científicos do nosso tempo. A própria caridade a isso obriga, para que seja maior a sua eficácia. Daqui a necessidade de contar com a colaboração de peritos em diversos campos, para um melhor conhecimento das necessidades e das causas que as geram ou alimentam, para uma mais eficaz programação das acções, etc. Por outro lado, é preciso tomar consciência, e fazê-la tomar à comunidade cristã, “sobre a necessária adaptação da sua presença caritativa à evolução histórica das necessidades evidenciadas pelas novas formas de pobreza” (João Paulo II, 21-IX-1979: cfr. Também João XXIII, 27-VII-1960; Paulo VI, 10-IX-1965).


  1. A Cáritas deve abrir-se a uma cooperação sincera e plena com todos aqueles organismos, instituições e pessoas que, no exercício do amor, da justiça, das obras de misericórdia, nos seus esforços pela promoção e pelo desenvolvimento, dão testemunho de caridade. Esta colaboração deve avançar pelos caminhos do ecumenismo. As iniciativas do mal são muito numerosas. As do bem, todavia, deveriam sê-lo ainda mais (Paulo VI. 10-IX-1965, 20-IV-1967, 28-IX-1972 e 17-V-1975).


  1. Consciente das suas próprias limitações, a Cáritas deve pôr a sua energia em desempenhar o melhor possível a função que lhe corresponde, sem invadir as competências que correspondem a outros organismos. “A Cáritas não pode querer assumir tudo sozinha, sem correr o risco de descuidar o sector específico da sua competência” (Benelli, 16-V-1975).


  1. As necessidades da própria diocese ou do próprio país não podem levar a Cáritas a fechar os olhos e a sua compaixão diante de situações mais difíceis doutros países (Paulo VI, 20-IV-1967 e 28-IX-1972).


  1. A Cáritas deve administrar os bens económicos, que os fiéis ponham nas suas mãos, com uma extrema escrupulosidade: “vigiemos sempre para que o dinheiro recolhido para os pobres, e que às vezes provém de outros pobres, seja realmente destinado ao serviço dos pobres” (João Paulo II, 28-V-1979).


  1. Convém que a Cáritas se abra “às perspectivas de um voluntariado da caridade que substitua a espontaneidade dispersa e ocasional pela organização racional do serviço, de modo funcional e contínuo, entendido não só como simples satisfação das necessidades imediatas, mas também, e sobretudo, como um empenhamento para modificar as causas que originam tais necessidades. Os voluntários, oportunamente formados, serão os naturais animadores de um processo de responsabilização da comunidade, do qual poderão derivar a mudança de estruturas marginalizadoras, a promoção de leis mais justas, a criação de relações humanas mais satisfatórias”. Este apelo ao voluntariado dirige-se “sobretudo aos mais jovens” (João Paulo II, 21-IX-1979).


 

Relações entre a Cáritas e a administração pública


Os três pontos que integram esta segunda parte são uma plicação à Cáritas, que penso ser legítima, dos princípios e orientações que os Papas dão para a acção sociocaritativa da Igreja em geral.


a)      Acolhimento cordial pela Cáritas da acção assistencial do Estado

O desenvolvimento da sociedade civil comporta, nos nossos dias, a intervenção dos poderes públicos na organização e subvenção de diferentes modos de assistência aos cidadãos. Esta atenção constitui um dever de toda a comunidade rectamente organizada. A Cáritas – e toda a Igreja em geral – compraza-se de que a consciência administrativa e de cidadania esteja atenta e se preocupe no socorro e prevenção de situações de desgraça; mais ainda, deseja que esta preocupação seja implementada, compreendida e participada por todos os cidadãos. Em definitivo, esta sensibilidade é “o reflexo dessa lei suprema da caridade que traz ao mundo o Evangelho” (Paulo VI, 16.V-1964), “é cristianismo em acto, é caridade praticada, é testemunho evidente do gesto humanístico do bom samaritano evangélico” (ib.).

      A Cáritas está plenamente convicta do bem que pode nascer desta intervenção cívica na resposta às crescentes necessidades de índole diversa.


b)      Relações amistosas e colaboração leal e fecunda

A Cáritas deve estar disposta a colaborar leal e generosamente com a acção benéfica e social do Estado nas diferentes fases do estudo, programação e execução. “Quando se trata de vir em ajuda do homem, a Igreja deseja colaborar, na medida das suas possibilidades e segundo o espírito do Evangelho, com todos os organismos da sociedade civil. Além disso, a escassez de recursos materiais próprios obriga a que ela se envolva num quadro de acção concertada e programada, se quer conseguir resultados efectivos” (João Paulo II, 5-XI-1981 e 23-XI-1981).

Mas, em razão da sua fidelidade ao Evangelho e da sua identidade eclesial, a Cáritas não pode abdicar dos seus princípios nem colaborar indiscriminadamente em todo o género de acções, sem antes discernir, com olhos límpidos, a conveniência e o grau de colaboração ou de não colaboração. Deve evitar também ser instrumentalizada pelo poder político ou pelos responsáveis políticos.

      De uma sã colaboração entre o Estado e a Igreja sairia enriquecida a acção sociocaritativa para os beneficiários já que, com a aportação de ambos, seriam melhor atendidos e valorizados os factores humanos e mais seriamente exigidos e assegurados os aspectos técnicos, tanto relativamente às pessoas, como relativamente aos meios. Oxalá fosse possível harmonizar sempre estes dois factores no campo de toda a acção assistencial sociocaritativa! Estas relações da Cáritas com o Estado às vezes podem ser difíceis; claramente, os cristãos não devem buscar uma prova de força para afirmar o direito de exercer a diaconia da caridade; ao contrário, sempre que possível, e onde for possível, é desejável que haja diálogo para uma recíproca tomada de consciência sobre os campos da competência de cada um e a sua independência própria numa mútua complementaridade.


c)      Respeito do Estado pela acção sociocaritativa da Cáritas

O incremento dos sistemas, métodos e fins assistenciais civis não tem que obstruir a organização e o exercício da assistência promovida por entidades e pessoas não revestidas de autoridade pública ou oficial, nomeadamente a exercida pela Igreja e entidades eclesiais ou confessionais. A intervenção pública neste campo, como noutros, não pode tornar-se excessiva, absorvente, excludente e totalitária. A “caça ao voto”, que pode levar a utilizar “a estratégia assistencial”, teria um resultado negativo para as instituições particulares, para a Igreja e mesmo para os possíveis beneficiários. Em benefício de todos, deve ser respeitada – e pedimos que o seja sempre, qualquer que seja a identidade política do poder – a acção sociocaritativa da Igreja. A Igreja – e a Cáritas em seu nome – deve gozar também de liberdade neste campo, para levar a bom termo, sem bloqueios, a sua acção de atenção e assistência caritativa, que lhe é exigida pela sua missão evangelizadora. Assim o proclama o Concílio Vaticano II: “em todo o tempo se faz reconhecer por este sinal distintivo do amor e, sem deixar de se alegrar com as iniciativas dos outros, reivindica para si as obras de caridade como dever e direito que não pode alienar” (Apostolicam Actuositatem, nº 8), e o reivindica João Paulo II, falando aos juristas católicos de Itália (25-XI.1978), na sua carta aos Chefes de Estado dos países signatários da Acta de Helsínquia (1-IX-1980) e na sua alocução à “Cor Unum” (5-XI-1981).

      Será bom recordar aqui também o princípio da subsidiariedade repetidamente invocado pelos Papas, desde Pio XI, deixando bem claro que a Igreja não nega que o Estado (ou outras expressões territoriais do poder público) possa e deva ocupar-se da assistência aos cidadãos necessitados. O que a Igreja proclama e defende é a liberdade do exercício da acção sociocaritativa pelas suas instituições próprias e o direito de assistir espiritualmente os beneficiários directos do Estado ou doutras entidades de direito público.

O Estado não pode sufocar a acção assistencial dos outros, nem tentar monopolizá-la. Pelo contrário, deve-a promover, impulsionar, tutelar, favorecer, estimular, integrar, subvencionar com receitas do erário público. O Estado, antes de mais, deve suscitar iniciativas; depois, ajudá-las; e só em último lugar, quando for necessário, supri-las. Nunca, claramente, pode arrogar-se a exclusividade da beneficência e assistência sociais.


Escolhos que é preciso superar

      A partir de uma visão global de todas as intervenções pontifícias  relacionadas com a Cáritas, parece descobrir-se uma preocupação latente na maioria delas e que convém sublinhar devidamente.


a) A acção caritativa (tarefa específica, ainda que não única nem exclusiva da Cáritas), quando levada a cabo devidamente, é digníssima e deve ser mantida sem complexos (ver nº 10 e 19 da primeira parte).


1. A opinião pública actual – especialmente entre a juventude – apresenta muitas objecções e reservas à acção caritativa das diversas instituições assistenciais e de beneficência existentes. O ambiente que nos rodeia considera tal acção como mais ou menos ilegítima e fora de moda. Pensa-se e afirma-se que a acção caritativa, no fundo, não é mais do que um pretexto para camuflar e às vezes justificar de fora faltas contra a justiça. Assegura-se que esta “caridade” humilha o beneficiário, já que lhe dá como “esmola” aquilo que lhe é devido por justiça. Repete-se que os que praticam a caridade através das obras de misericórdia pretendem é apaziguar as suas consciências farisaicas, cobrindo com um véu hipócrita a exploração das necessidades alheias. Assegura-se que em muitos casos o que se dá ao indigente através das obras de caridade não é mais do que o que previamente lhe foi roubado, muitas vezes pelos mesmos que agora devolvem sob a forma de esmola uma parte do que já era absolutamente seu. Mais ainda, alguns olham com muita desconfiança qualquer acção caritativa porque pensam que, em última instância, a mesma acaba por ser prejudicial para a elevação do proletariado, para a mudança das estruturas e para o rápido triunfo da justiça social.

Estas acusações e posições levam, muitas vezes, ao desconcerto e ao desânimo de muitas pessoas que consagram, de boa fé e com admirável generosidade, os seus esforços, o seu tempo e os seus recursos na acção da Cáritas. Algumas vezes chegam a provocar uma crise de consciência; e num ou noutro caso conseguem mesmo convencer e levar as pessoas a assumi-las.

Sem analisar aqui a margem de razão que pode haver nestas acusações e sem nos querermos defender contra elas com argumentos apologéticos, será melhor aceitar honestamente a parte de verdade que as mesmas possam ter – e seguramente têm. Infelizmente, aqui e além ocorreram casos que, se não justificam, ao menos explicam estas reservas, juízos negativos, objecções, descrições caricaturais e acusações contra a prática das obras de caridade.

Pio XI teve que sair já contra certas “obras de caridade” e desmascarar corajosamente a incoerência e descontinuidade na vida cristã” de alguns que, “aparentemente fiéis ao cumprimento dos seus deveres religiosos, logo, no campo do trabalho ou da indústria, da profissão, no comércio ou no emprego, por um deplorável desdobramento de consciência, levam uma vida demasiado desconforme com as normas claras da justiça e da caridade cristã, sendo assim ocasião de grave escândalo para os débeis e oferecendo aos maus um fácil pretexto para desacreditar a própria Igreja” (Div. Redempt., nº 56; cfr. Também nn.50-55).

Noutro lugar do mesmo documento diz-se que “a pretensão de mascarar com pequenas dádivas de misericórdia as grandes obrigações impostas pela justiça” é, com toda a evidência, um “falso simulacro de caridade” (ib., nº 50; cfr. também Quadragésimo Anno, nº 4).

O contra-testemunho desta “caridade” mistificadora e adulterada é talvez o que suscita maior desconfiança relativamente às obras de caridade praticadas na e pela comunidade eclesial. Isto é triste e lamentável. Mas o mais triste é que, desgraçadamente, as caricaturas aberrantes da caridade continuarão a dar-se até ao fim do mundo. Também vale para este campo concreto da acção caritativa a parábola do Senhor sobre o trigo e o joio (cfr. Mt 13, 24 ss).


2. Sem dúvida, a Cáritas – tanto nas suas frequentes mensagens à comunidade eclesial e à opinião pública em geral, como no exercício permanente da sua acção sociocaritativa – faz um esforço sincero por evidenciar a sua fidelidade à doutrina da Igreja sobre as relações da justiça e da caridade. Apesar das suas limitações e possíveis erros, para a Cáritas é um princípio vital que o amor ao próximo e a justiça não só não se opõem, mas que são inseparáveis e se complementam mutuamente. Sabe que separar a caridade e a justiça seria a perversão do amor cristão. Para a Cáritas, a justiça é a primeira exigência, o limite ínfimo, o ponto de partida e a “conditio sine qua non” da caridade. Está convencida de que amar é, antes de tudo, respeitar efectivamente a dignidade pessoal e os direitos inalienáveis do próximo, já que não se ama o próximo se não se deseja que receba tudo o que lhe é devido. Para a Cáritas, o amor cristão implica e radicaliza as exigências da justiça, dá-lhes uma motivação nova e uma força interior, já que Cristo conferiu valor divino ao homem e morreu por todos os nossos irmãos. A Cáritas crê firmemente que na morte e ressurreição de Cristo foi estabelecida a fraternidade universal, que deve ser realizada neste mundo como antecipação da futura participação comunitária na vida imortal de Cristo glorificado. Por isso proclama sem cessar que em cada homem nos encontramos com Cristo.


Este respeito pelo próximo deve ser sempre, para a Cáritas, um pressuposto elementar e imprescindível e, ao mesmo tempo, um fruto da autêntica caridade. Onde esta é sincera, cria uma delicadeza e uma atenção que não se deixa enrolar em nenhum equívoco. Aqueles cristãos que vivem e praticam a acção caritativa no seu sentido genuíno, são autênticos modelos de respeito pelo homem, que é a forma mais essencial da justiça. Aonde falta o respeito não pode falar-se de caridade. Ninguém pode, por conseguinte, escudar-se na prática da caridade para descuidar os seus deveres de justiça, aos quais o cristão – como homem e como cristão – está rigorosamente obrigado (cfr. Tg 5, 4-6)

Esta inseparabilidade da caridade e da justiça é percebida com mais clareza nos nossos dias, mas não é uma novidade. A tradição genuína dentro da Igreja sempre percebeu esta relação e, desde há muitos séculos, expressou-a com palavras explícitas, até cristalizar neste parágrafo do concílio Vaticano II: “Para que este exercício da caridade seja verdadeiramente irrepreensível e apareça como tal, é necessário… cumprir antes de mais as exigências da justiça, para não dar como caridade aquilo que já é devido em razão da justiça” (A.A.,nº 8).


3. Claro que a Cáritas tenta ir mais longe. Para ela a caridade autêntica não só implica necessariamente as exigências da justiça, como as transcende. Depois de cumpridas com escrupuloso rigor todas as exigências da justiça, pode dizer com S. Paulo que “a caridade permanece” ainda (1 Cor 13, 8). Mais ainda, …


… é indispensável que permaneça. Não pode adquirir um rosto que a identifique com a justiça. Porque a caridade aperfeiçoa a obra da justiça: constitui a sua motivação, mas não se confunde com ela. É preciso que se mantenha uma caridade autêntica, plena (Benelli, 16-V-1975).


Assim é; a caridade ao próximo, depois de robustecer o sentido da justiça, de interiorizar até ao fundo do coração as suas exigências e de ser a alma que acalenta a sua observância, deve todavia ir muito mais longe. Porque a justiça não chega à sua plenitude interior, mas só o amor. Dado que cada ser humano é a imagem visível de Deus invisível e irmão de Cristo, o cristão encontra em cada pessoa o próprio Deus com uma exigência absoluta de justiça e de amor. Amor que não pára uma vez cumprida a justiça, mas que continua a ajudar aquelas pessoas e atendendo àqueles casos que, limitando-nos somente às exigências da justiça, poderíamos deixar no esquecimento.


O amor ao próximo leva a comprometer-se seriamente em favor dos irmãos que sofrem qualquer tipo de injustiça, para os ajudar a libertar-se da sua escravidão ou servidão. Dá força para preparar o terreno para que sejam ampliados os limites e horizontes da justiça, de modo que algumas das exigências de hoje ainda limitadas ao campo da caridade entrem amanhã na esfera dos deveres da justiça, e o que hoje não passa de uma compelação íntima da própria consciência possa amanhã vir a cristalizar-se em norma jurídica.

Naturalmente, esta é a ideia que a Cáritas deve ter da acção caritativa e a ela deve ajustar toda a sua ampla e intensa actividade.


b) Existe um segundo ponto – origem, algumas vezes, de dúvidas e tensões – que também está muito presente na preocupação dos Papas e das altas instâncias do Vaticano. Trata-se da necessidade de conseguir a devida coordenação e uma colaboração sincera e cordial entre a “Caritas Internationalis” e outros organismos afins (ver nº 15 da primeira parte).


1) Actualmente, dentro da Igreja católica, existem quatro organismos internacionais, entre os quais, por causa da sua afinidade, poderiam surgir, nalguns casos, conflitos de competências. São a “Caritas Internationalis”, a Cooperação Internacional para o Desenvolvimento Socioeconómico (CIDSE), a Comissão Pontifícia “Iustitia et Pax” e o Conselho Pontifício “Cor Unum”. Talvez tenham interesse umas breves pinceladas sobre cada um destes organismos; assim se perceberá melhor em que coincidem e em que se diferenciam.


* A “Caritas Internationalis” foi fundada em 1951 para promover e coordenar a nível internacional – com poder, rapidez e eficácia – a prestação de socorros, quando se produzem grandes catástrofes (terramotos, situações de urgência, etc.). Além da atenção a estes casos excepcionais, a “Caritas Internationalis” assegura assistência aos refugiados e emigrantes, aos necessitados, aos enfermos e deficientes. Atende à formação profissional da juventude e dos responsáveis do trabalho social, incluindo aqueles que hão-de prestar os seus serviços nos países em vias de desenvolvimento. Preocupa-se também com a “educação para a caridade” através de publicações. Outra das tarefas da “Caritas Internationalis” é a criação de Cáritas nacionais naqueles países onde ainda não existem, assim como a representação dos organismos católicos de caridade a nível internacional (v. g., no ECOSOC, UNESCO, UNICEF, FAO, OIT, OMS, etc.). Ajudou muito ao desenvolvimento socioeconómico de vários países da África, Ásia e América Latina, e fomentou a colaboração ecuménica, especialmente no campo dos socorros de urgência e da colaboração para o desenvolvimento. Ainda que não seja um organismo da Cúria vaticana, a Santa Sé tem bastante influência sobre a “Caritas Internationalis”: tem nela uma espécie de conselheiro ou assistente eclesiástico que participa nas principais reuniões (Assembleia Geral, Comité Executivo, Secretariado); Exige-se o seu “placet” prévio para a realização das listas dos candidatos à Presidência e ao Secretariado Geral; a alteração dos Estatutos ou a mudança da sede social têm que ser pedidas à Secretaria de Estado.


* A CIDSE, projectada durante o Congresso Eucarístico Internacional de Munique (1960), foi fundada em 1965. Tem a sua sede social em Bruxelas e goza da simpatia e apoio do episcopado belga, mas não é obra oficial sua. Inicialmente constituiu-se como grupo de trabalho e de união entre organismos nacionais católicos de ajuda mútua – uns, dependentes da hierarquia; outros, não – , e oferece principalmente, graças às suas colectas da Quaresma, a sua colaboração na realização de projectos nos países menos favorecidos. Hoje apresenta-se como uma organização internacional com vocação universal dentro do campo da ajuda da Igreja à promoção humana e ao desenvolvimento. É de sublinhar a importância dos recursos que distribui, a actividade que desenvolve junto de diversas instituições internacionais, das quais conseguiu obter o estatuto consultivo, e a sua influência na sensibilização do mundo católico para os problemas do desenvolvimento. Muito mais autónoma do que a “Caritas Internationalis” perante a hierarquia, em 1977 pediu à Santa Sé o reconhecimento como organismo da Igreja. Este reconhecimento supõe aceitar uma intervenção maior dos episcopados e dos órgãos do Vaticano.

Assim, pois, a “Caritas Internationalis” e a CIDSE – diferentemente da Comissão Pontifícia “Iustitia et Pax” e do “Cor Unum” – não são organismos da Santa Sé, surgiram com uma força federativa de baixo para cima, são constituídos pelos representantes dos organismos ou associações dos países membros, elegem eles próprios, democraticamente, os cargos directivos, etc.


* A Comissão Pontifícia “Iustitia et Pax” foi instituída com carácter experimental pelo Motu Próprio “Catholicam Christi Ecclesiam” (6-I-1967) de Paulo VI e reestruturada de maneira estável e definitiva pelo mesmo Papa com o Motu Próprio “Iustitiam et Pacem” (10-XII-1976). A Comissão “Iustitia et Pax” tem como competência específica o estudo e o aprofundamento – sob o aspecto doutrinal, pastoral e apostólico – dos problemas relativos à justiça e à paz, a fim de criar junto do Povo de Deus uma sensibilidade de responsabilidade perante estes problemas. É um organismo da Cúria Romana e tem um cardeal como Presidente.


* O Conselho Pontifício “Cor Unum” para a promoção humana e cristã foi instituído por Paulo VI com uma carta pessoal dirigida ao cardeal Villot, Secretário de Estado (15-VII-1971), ao qual confiava a presidência do novo organismo. O objectivo desta iniciativa era oferecer a todo o Povo de Deus a oportunidade de um encontro comum à volta dos temas da solidariedade e do desenvolvimento, e a possibilidade de actuar segundo os princípios do Evangelho. Para conseguir isto, o “Cor Unum”, composto em cerca de 50% por bispos e leigos de países em vias de desenvolvimento e outros 50% por organizações católicas de ajuda e assistência, coordena as actividades realizadas no campo eclesial para favorecer a promoção integral, especialmente nos países do Terceiro Mundo, e para prestar ajuda quando ocorre alguma catástrofe. O “Cor Unum” não é um órgão federativo, mas sim “um lugar de encontro para todos os organismos da Igreja consagrados à caridade e ao desenvolvimento” (João Paulo II, 28-V-1979). Actualmente, é presidido pelo mesmo cardeal Presidente da Comissão Pontifícia “Iustitia et Pax”.


2) A “Caritas Internationalis”, desde o seu nascimento em 1951, vinha cobrindo de facto alguns campos que posteriormente – no todo ou em parte – foram assumidos também pela CIDSE ou foram oficialmente confiados pela Santa Sé à “Iustitia et Pax” e/ou ao “Cor Unum”.

Assim, por exemplo, em relação à “Iustitia et Pax”, temos um parágrafo muito significativo de Paulo VI aos participantes da VIII Assembleia Geral da “Cáritas Internationalis” (9-V-1969). Diz aí:

“Neste movimento de fraternidade universal ao serviço da humanidade sofredora, não estais sós. A Igreja, sobretudo depois do Concílio, sentiu a necessidade de fazer um maior esforço para harmonizar melhor a sua ajuda. É à nossa Comissão Pontifícia “Iustitia et Pax” que Nós confiámos a missão de expressar oficialmente as grandes orientações da Santa Sé nos campos da justiça social, do desenvolvimento, da promoção humana e da paz. Como já sabeis, esta comissão Pontifícia tem igualmente como tarefa promover, animar e articular os esforços da Igreja para o estudo destes graves problemas e a sensibilização da opinião pública numa acção educativa, ao mesmo tempo que lhe cabe harmonizar as iniciativas oportunas dos organismos da Igreja, não só no seu interior, mas também em cooperação com as grandes instâncias internacionais”.


À luz deste parágrafo, há motivos para suspeitar que o Papa transfere para a Comissão “Iustitia et Pax” algumas das atribuições que de facto (é duvidoso poder afirmar-se que também em virtude dos Estatutos), antes da criação desta Comissão Pontifícia, vinham a ser desempenhadas pela “Caritas Internationalis” e, também de iure, estavam confiadas a algumas Cáritas nacionais pelas respectivas Conferências Episcopais.

No caso do “Cor Unum” – cuja função específica, diferentemente da Comissão “Iustitia et Pax” não é o estudo e a consciencialização, mas sim a operatividade – , esta transferência de atribuições oferece menos dúvidas. Desde a sua criação em 1971, tudo quanto se refere à coordenação de organismos católicos de ajuda em acções operativas concretas junto de catástrofes ou em favor do terceiro Mundo cabe ao “Cor Unum”.

Actualmente, a “Caritas Internationalis” não pode invocar como vigentes estas palavras pronunciadas por Paulo VI no seu discurso ao Comité do programa Mundial para a Alimentação (20-IV-1967):

“Já indicámos na nossa mensagem à ONU quão preocupados estamos de que os nossos filhos católicos alarguem o seu coração e a sua acção às dimensões das imensas necessidades do mundo. Em muitos países constituíram-se organizações católicas, sob a direcção dos bispos, para ajudar o Terceiro Mundo. Outras, já existentes, ampliaram o seu raio de acção neste sentido. Um grande organismo internacional foi delegado por Nós para englobar e coordenar toda esta acção e para representá-la a nível mundial: a Caritas Internationalis.”


            De qualquer modo, mesmo depois da criação do “Cor Unum”, a “Caritas Internationalis” continua a ser – tal como no passado – o elemento animador e coordenador de todas as Cáritas nacionais implantadas em todos os continentes, sustentando-as nas suas actividades de assistência e desenvolvimento.


            A Cáritas – não só a nível internacional, mas também a nível nacional e diocesano – deve ter muito presentes estes dois pontos comentados nesta terceira parte, a saber, que a acção caritativa devidamente realizada continua a ser válida e que a acção da Cáritas deve coordenar-se necessariamente, a nível teórico e prático, e sobretudo de maneira espiritual, cordial e católica, com todos os organismos afins da Igreja. Quiçá por não se haverem tido suficientemente em conta estes dois pontos, a intervenção do Vaticano, na abertura da X Assembleia Geral da Cáritas Internationalis, foi algo dura (veja-se o que dissemos na XXX Assembleia Nacional da Cáritas Espanhola: Anuário Cáritas 1976, pp. 302-320).

           

CONCLUSÃO

            É preciso pôr ponto final a este breve esboço sobre a Cáritas nos documentos pontifícios. Prescindimos do parenético e mesmo do teológico, para centrarmos a nossa atenção na natureza, estrutura, fins e campos de competência da Cáritas. Seria temerário ou pelo menos arriscado pretender deduzir destes ensinamentos e instruções papais conclusões que escapam à sua intenção e alcance. É preciso ter presente que os documentos analisados se dirigem, praticamente todos eles, à “Caritas Internationalis”, a outros organismos supra-nacionais ou à Cáritas nacional da Itália. Por esta razão, as Cáritas diocesanas e paroquiais raras vezes são referidas. É importante ter isso em conta na altura de querer aplicar os ensinamentos dos Papas a realidades diferentes daquelas que eles tinham em mente quando escreveram. De qualquer modo, podemos afirmar que, na maioria dos casos, estes ensinamentos são perfeitamente válidos – pelo menos no seu núcleo fundamental – para as Cáritas em todos os seus níveis.

            Alguns, excessivamente obcecados por alguns parágrafos do Papa e especialmente da Carta do cardeal Villot (1974) e da homilia de Mons. Benelli (1975), falaram de “travão” e “andar para trás”. É abusivo e errado falar nestes termos. Há, sim, no conjunto das intervenções vaticanas, clarificação de objectivos e precisão dos campos de competências; há harmonização nas tarefas da Cáritas (a nível internacional) com alguns organismos nascidos ou criados posteriormente, a fim de conseguir uma eficácia maior; há reparos para centrar a Cáritas no “age quod agis” e não se lançar noutras tarefas que saem do seu campo específico, se isso é em detrimento da sua função própria ou se o faz invadindo indevidamente o terreno confiado a outros organismos eclesiais; etc. Mas todas estas advertências estão claramente orientadas para conseguir uma maior eficácia da Cáritas dentro da pastoral de conjunto.

            Por outro lado, como acontece em todos os campos, os ensinamentos e as instruções papais são uma referência obrigatória, mas não dispensam de modo nenhum de pensar e de fazer progredir a doutrina e as instituições com o pensamento e a acção.

            É de agradecer tudo quanto os últimos Papas disseram sobre a Cáritas. É a melhor prova de que a Cáritas é uma seiva de vida, cujos passos segue com grande interesse aquele que – segundo a célebre frase de Santo Inácio de Antioquia – “preside à caridade universal”.



 

(*) – Na altura da publicação (1982), D. Guix Ferreres era Bispo Auxiliar de Barcelona.






Partilhar:

Deixe uma resposta

Cáritas

A Cáritas Portuguesa é um serviço da Conferência Episcopal Portuguesa. É membro da Cáritas Internationalis, da Cáritas Europa, da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, da Confederação Portuguesa do Voluntariado, da Plataforma Portuguesa das ONGD e do Fórum Não Governamental para a Inclusão Social.

Cáritas em Portugal

Contactos

Rua D. Francisco de Almeida, n 14
3030-382 Coimbra, Portugal

239 792 430 (Sede) – Chamada para rede fixa nacional

966 825 595 (Sede) – Chamada para rede móvel nacional

239 792 440 (Clínica) – Chamada para rede fixa nacional

 caritas@caritascoimbra.pt

NIF: 501 082 174

Feed

 

Comunicação Institucional