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A coordenação da ação social e caritativa

Texto publicado por Corintios XIII, n. 117-118, Janeiro a Junho de 2006 (reprodução do texto publicado em 1988)

A COORDENAÇÃO DA ACÇÃO SOCIAL E CARITATIVA NA PASTORAL DIOCESANA – FUNÇÃO COORDENADORA DA CÁRITAS

 

Ramón Echarren Ysturiz (*)

 

Há poucas semanas, o Papa João Paulo II ofereceu-nos uma magnífica Encíclica Social, a “Sollicitudo Rei Socialis”. Permitam-me que, como introdução ao nosso tema, comece citando algumas frases dessa Encíclica. Faço-o não por simples reverência ao nosso Papa, por muito legítima e obrigatória que seja essa reverência, mas porque o tema que vou expor só se pode entender a partir do enfoque que o Papa faz da pobreza e do amor cristão. Diz o Papa, entre outras coisas:

“O ensino e a difusão da doutrina social fazem parte da missão evangelizadora da Igreja. E, tratando-se de uma doutrina destinada a orientar o comportamento das pessoas, há-de levar cada uma delas, como consequência, ao «empenhamento pela justiça» segundo o papel, a vocação e as circunstâncias pessoais. O exercício do ministério da evangelização no campo social, que é um aspecto do múnus profético da Igreja, compreende também a denúncia dos males e das injustiças.” (nº 41). “A opção ou amor preferencial pelos pobres” “é de uma opção, ou uma forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja. Ela diz respeito à vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens.” (nº 42). “Os pobres, infelizmente, em vez de diminuírem, multiplicam-se, não só nos países menos desenvolvidos, mas, o que parece não menos escandaloso, também nos mais desenvolvidos. É necessário recordar mais uma vez o princípio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo são originariamente destinados a todos. O direito à propriedade privada é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade, de facto, está subjacente «uma hipoteca social», quer dizer, nela reconhece-se, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio do destino universal dos bens.” (nº 42).

“Assim, faz parte do ensino e da prática mais antiga da Igreja a convicção de estar obrigada, por vocação — ela própria, os seus ministros e cada um dos seus membros — a aliviar a miséria dos que sofrem, próximos e distantes, não só com o «supérfluo», mas também com o «necessário». Nos casos de necessidade, não se podem preferir os ornamentos supérfluos das igrejas e os objectos do culto divino preciosos; ao contrário, poderia ser obrigatório alienar estes bens para dar de comer, de beber, de vestir e casa a quem disso está carecido.” (nº 31) (Pense-se, a este respeito, nos peditórios que fazemos para a Cáritas, para os mais pobres, e as colectas que fazemos para outros fins, evitando a fácil demagogia de pensar em retábulos ou em relicários ou em cálices mais ou menos valiosos…).

            Bastam estas palavras do Papa para situar o tema, ou seja, no contexto destas afirmações já podemos atacar o tema da coordenação da caridade na pastoral diocesana ou o da função coordenadora da Cáritas Diocesana.

            Não é fácil falar de coordenação. Trata-se de um termo que quase inevitavelmente desperta todos os mecanismos de defesa das pessoas e instituições diante de uma palavra quê se traduz automaticamente por “absorção”, “perda de independência”, por “integração”, ou coisas semelhantes. Também para os chamados a coordenar o termo tem ou pode ter as suas ressonâncias particulares, numa linha de sentir-se superiores, de aquisição de poder ou de prestígio. Tudo isso torna particularmente difícil falar de coordenação.

            Quando falamos de coordenação entram em jogo uma série de realidades que é necessário perceber, analisar e hierarquizar à luz do Evangelho: os pobres e os marginalizados, a missão e os carismas dos cristãos; a Igreja, Corpo de Cristo e Sacramento da salvação querido por Deus para todos os homens; as instituições caritativas e sociais; o amor de Deus, a caridade que foi infundida nos nossos corações. Na medida em que acentuemos a importância relativa duma ou doutra dessas realidades, na medida em que essas realidades sejam hierarquizadas duma ou doutra maneira, assim a coordenação se torna viável ou inviável, necessária ou não necessária.

            Mas o problema coloca-se-nos com toda a urgência pastoral quando partimos desta dupla constatação:

            1ª – A urgência dramática posta pela pobreza, tal como hoje se manifesta no nosso país e no mundo inteiro.

            2ª A urgência inadiável de um testemunho de amor pelos pobres, pelos marginalizados, que apareça e se defina, para além dos grupos e das instituições, como o amor da comunidade cristã, como amor da Igreja, num momento em que o grande obstáculo de muitos para acreditar, ou o factor que leva outros tantos a afastar-se da fé, é a condição eclesial da fé.

            Não se trata, portanto, de uma discussão ou de uma decisão no campo abstracto dos princípios. No meu modo de ver, trata-se sobretudo de uma decisão pastoral na linha do que Deus nos pede neste momento histórico em ordem a que a evangelização e o testemunho evangélico da Igreja sejam levados ao seu nível mais alto de significação num mundo que desespera, impotente diante da miséria, e num mundo que não consegue receber em plenitude a Boa Notícia e a sua radical esperança de salvação porque, entre outras coisas, não consegue perceber a Igreja como Sacramento de Salvação.

            Trata-se, pois, de nos pormos ao serviço dos marginalizados e de uma acção caritativa e social, de tal maneira que nos ponhamos ao serviço do homem de hoje para lhe oferecer de modo integral e com uma maior transparência e plenitude o Evangelho do Senhor, para bem da humanidade e para bem dos indigentes que são “Sacramento” do Senhor-Jesus.

            Não se nega em absoluto que cada instituição seja Igreja nem que cada instituição ofereça um testemunho de amor eclesial. O que se afirma é que inevitavelmente estes testemunhos aparecem dispersos, unidos à Igreja não de modo imediato mas mediato, e que isso dificulta ao homem de hoje a leitura da realidade eclesial como “sacramento universal de salvação, que manifesta e ao mesmo tempo realiza o mistério do amor de Deus ao homem” (GS 45), como “comunidade de fé, esperança e caridade” (LG 8), como realidade visível que “abraça com o seu amor todos os afligidos pela debilidade humana; mais ainda, que reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu Fundador pobre e paciente, se esforça por dar remédio às suas necessidades e procura servir neles a Cristo” (LG 8). O facto é que numa sociedade tão pluralista como a nossa, na qual se multiplicam sem cessar as entidades associativas, não é fácil descobrir a identidade eclesial (e também a cristã) nas instituições caritativas e sociais da Igreja, e, mesmo quando descoberta essa identidade, não é fácil fazer uma leitura da sua actividade como acção própria e específica da comunidade cristã. E esta afirmação não é teórica: não é difícil descobrir, como opinião pública largamente difundida, que a Igreja não faz nada pelos pobres e marginalizados, ou que o que faz não tem consistência, ou que a Igreja continua a fazer exclusivamente uma acção benéfico-assistencial fundamentalmente paternalista, ou que a Igreja continua a identificar caridade e esmola, ou que a Igreja não manifesta nenhuma atenção às novas formas de marginalização, etc.

            E atrás dessa visão da acção caritativa, lateja uma visão profundamente desprestigiada da Igreja. Isto não nega mil esforços generosos das diferentes instituições eclesiais para acabar com esse conceito deteriorado de caridade, para renovar a acção caritativa, para dotar a caridade de toda a sua imprescindível dimensão social, para oferecer uma outra imagem renovada da acção caritativa e social. Mas estes esforços não se identificam socialmente, na opinião pública, com a Igreja. Socialmente repercutem, sem dúvida, numa melhor visão das próprias instituições, que podem chegar a ser muito bem vistas, mas como fenómenos isolados, especificamente institucionais, como excepções ao que a Igreja é, ao que a comunidade cristã é, que continua a aparecer como um fenómeno fundamentalmente retrógrado e paternalista no campo do social. Isso demonstra a existência de um “curto-circuito” entre instituições eclesiais e Igreja, que deita abaixo a possibilidade de um testemunho eclesial e comunitário a partir dos testemunhos institucionais e associativos no campo da acção caritativa e social.

            O que está em jogo, portanto, é até que ponto os cristãos que, em razão dos seus carismas, actuam no campo da acção caritativa e social, estão dispostos a organizar-se de tal forma que no coração do mundo de hoje apareça em plenitude um testemunho eclesial comunitário, de amor aos necessitados, em vez duma série de testemunhos dispersos que a sociedade dificilmente relaciona com a Igreja e com a sua missão, com o Evangelho e com a sua força transformadora do homem.

            Tudo isso significa que a coordenação da acção caritativa e social não é uma mera exigência organizativa, nem muito menos responde a um afã sistematizador em ordem a encontrar umas grelhas para melhor hierarquizar a pastoral da Igreja, mas sim a uma clara intenção evangelizadora na procura de uma Igreja que seja e apareça como “sacramento universal de salvação” (GS 45; LG 48).

            E isso tem uma especial importância numa sociedade que já não aparece como cristã, que já deixou de ser “cristandade”, para se converter num conglomerado social pluralista, conflituoso e secular, em cujo seio a Igreja necessita de recuperar a sua própria identidade cristã diferenciada de outros mil fenómenos associativos sem relação alguma ou com relações explícitas ou implícitas a algumas motivações cristãs, mas que não desejam nem procuram a sua identificação eclesial na plena integração nessa comunidade de fé, de esperança e de amor que nós, os discípulos do Senhor, constituímos. Dito de outra maneira, na nossa sociedade já não é possível dar por suposta a identidade cristã e eclesial de um serviço, de uma associação ou de uma instituição, pelo mero facto de que assim se auto-define, mas é necessária a explicitação clara e definida da pertença à Igreja de Jesus, uma pertença que manifeste, para além de uma situação meramente jurídica, uma vinculação visível à comunidade dos crentes, à comunidade cristã que continua assídua ao ensinamento dos apóstolos, à oração e à fracção do pão, ao pôr em comum os bens com os necessitados e a uma comunidade de vida (cfr. Act 2, 42), realizando tudo isto numa perfeita coordenação de vida eclesial. Isto é o que biblicamente chamamos Pastoral de Conjunto.

            Nesta Pastoral de Conjunto, que não é outra coisa senão a realização simultânea e harmoniosa, em cada comunidade e por cada comunidade, das três acções essenciais básicas, exige-se um corte radical com uma visão da acção caritativa e social que não passe de uma estrutura dispersa de agências de serviços sociais sem uma vinculação expressa entre si e a comunidade que celebra a fé e proclama a Palavra, que é e deve aparecer como uma comunidade de fé, de esperança, de culto e de amor, única realidade que pode e deve dar unidade e coerência interna às suas próprias actividades essencialmente evangelizadoras.

            Não é de estranhar por isso que o Concílio tenha insistido em que se fomente “a coordenação e íntima conexão de todas as obras de apostolado sob a direcção do Bispo, de modo que todos as iniciativas e instituições (catequéticas, missionárias, caritativas, sociais, familiares, escolares e quaisquer outras que persigam um fim pastoral) tenham um desenvolvimento harmónico, pelo qual resplandeça ao mesmo tempo mais claramente a unidade da diocese” (ChD 17). “Fomente-se a cooperação ordenada entre os vários Institutos religiosos, e entre estes e o clero diocesano. Haja também íntima coordenação de todas as obras e actividades apostólicas, a qual resulta principalmente daquela disposição de corações e de espíritos que se radica e funda na caridade. Promover esta coordenação, compete, para a Igreja Universal, à Sé Apostólica; em cada diocese, ao seu Bispo; e finalmente, no próprio território, aos Sínodos patriarcais e às Conferências episcopais” (ChD 35).

            Ainda na mesma linha, o Concílio afirmou que “quanto possível, haja em todas as dioceses conselhos que ajudem a obra apostólica da Igreja, quer no campo da evangelização e santificação quer no campo caritativo, social e outros, onde os clérigos e os religiosos colaborem dum modo conveniente com os leigos. Tais conselhos poderão servir para coordenar as diversas associações de leigos e suas iniciativas apostólicas, respeitando a índole e autonomia própria de cada uma” (AA 26). Não foi isso o que a Conferência Episcopal quis que a Cáritas seja?

            A pobreza não é uma realidade nova. O que é novo é o brutal contraste que hoje se dá, na nossa sociedade e no mundo inteiro, entre as possibilidades e o efectivo bem-estar e as situações de carência numa parte da população de um mínimo de recursos para subsistir. O que é novo de todo é que no hoje em que vivemos há recursos de sobra para resolver os problemas da pobreza; há possibilidades técnicas de sobra para acabar com a miséria em todas as suas formas; há bens suficientes para paliar ou eliminar as situações de pobreza. E, todavia, a pobreza chega a todo o lado, multiplica-se onde quer que seja, está a destroçar milhões de seres humanos.

            Isso significa que vivemos numa sociedade radicalmente injusta, uma sociedade na qual nunca se falou tanto de justiça, de respeito pela pessoa, de direitos fundamentais da pessoa humana, e na qual, por outro lado, se continuam a espezinhar, de facto e de direito, as mais elementares exigências de dignidade de uma multidão de seres humanos. Talvez poucas vezes ao longo dos séculos a Igreja se tenha visto confrontada com uma sociedade tão profundamente hipócrita como a nossa, em que as palavras e os gestos se movem em campos tão longínquos, tão separados uns dos outros. Poder-se-iam assinalar muitas formas de hipocrisia típicas do nosso tempo.

            O facto é que a nossa sociedade, cheia de palavras bem intencionadas, pregoeira incansável da justiça e da solidariedade, dos direitos fundamentais da pessoa, é uma sociedade radicalmente injusta na qual centenas de milhões de pessoas vivem numa grave situação de indigência.

            “A missão própria confiada por Cristo à sua igreja não é de ordem política, económica ou social: o fim que lhe propôs é, com efeito, de ordem religiosa. Mas desta missão religiosa deriva um encargo, uma luz e uma energia que podem servir para o estabelecimento e consolidação da comunidade humana segundo a lei divina. E também, quando for necessário, tendo em conta as circunstâncias de tempos e lugares, pode ela própria, e até deve, suscitar obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres, tais como obras caritativas e outras semelhantes” (CS 42) (Cfr Sollicitudo Rei Socialis).

            A eficácia nunca foi um critério evangélico. Combater a partir da Igreja a injustiça da nossa sociedade com critérios políticos, económicos ou sociais, conduz-nos sempre a um beco sem saída. Não é essa a missão da Igreja.

            Mas é missão da Igreja motivar evangelicamente os cristãos para que se comprometam em todas as tarefas temporais em que se luta pelo desaparecimento das injustiças, da marginalização, da exploração do homem pelo homem.

            Hoje é muito raro encontrar um cristão que se atreva a negar, embora só nas palavras!,  a radical exigência do amor aos pobres, da partilha, do compromisso com a causa do reino de Deus e sua justiça. Mas são menos os cristãos que conseguem compreender e aceitar aqueles que são os destinatários privilegiados desse Reino.

            E se são menos os cristãos que conseguem compreender e aceitar que os pobres são destinatários privilegiados, ainda que não exclusivos, da Boa Notícia e do Reino de Deus, então quase não há mesmo cristãos e sacerdotes que compreendam e aceitem que a exigência radicalmente evangélica de amar os pobres seja um ministério eclesial, como o ministério da Palavra ou como o da Liturgia, quer dizer, que seja missão da comunidade cristã enquanto tal, essa comunidade que se reúne para escutar a Palavra e que se preocupa (e bem…) por institucionalizar comunitariamente a Catequese, que se reúne para celebrar a Ceia do Senhor e os sacramentos e para rezar, mas que não se reúne nem vive comunitariamente o amor aos pobres e marginalizados.

Creio que é nesta altura que devo referir que a Cáritas não foi criada como um simples organismo, nem como um movimento, nem como um grupo mais ou menos qualificado de leigos, e menos ainda como uma agência de serviços de beneficência. A Cáritas é a comunidade cristã, seja paroquial, seja diocesana, realizando-se evangelicamente no amor solidário com os pobres, os marginalizados, os explorados. Assim entendida, a Cáritas não é outra coisa senão o instrumento do “Ministério da Caridade” que tem que ser realizado pela Igreja inteira.

            Numa altura em que os problemas dos pobres são cada dia mais prementes para as consciências verdadeiramente cristãs ou verdadeiramente humanas, a Cáritas pode ter a tentação de se deixar absorver pela imediatez dos casos que procuram sem adiamentos soluções práticas e respostas urgentes às carências dos pobres. Não se pode duvidar que a “partilha” generosa e imediata é imprescindível: não podemos deixar estendidos, mortos no caminho da vida, aqueles que só querem subsistir, sob a desculpa de que temos de transformar a sociedade ou de que temos de resolver as causas profundas da injustiça, da pobreza, da marginalização. Nunca podemos esquecer que cada pobre, cada homem submergido na miséria e na marginalização, é um mistério cristão completo, que reflecte o rosto de Cristo e a sua morte na cruz; deixá-lo à sua sorte é deixar abandonado a Cristo. Mas isso não deve impedir a Cáritas, a comunidade cristã, de dar lugar a um enfoque do ministério da caridade que não esqueça nem relegue a atenção global teológico-pastoral do verdadeiro serviço à caridade. Temos que estar conscientes de que na nossa Igreja continua presente uma imagem da caridade que encobre a face genuína do amor cristão e que não se incorporou coerentemente a relação assistência-promoção social. O que é explicável – como afirma João Paulo II – “se a caridade significa um movimento só do coração ou a ajuda prestada por pura benevolência…”, caso em que “não pode harmonizar-se com os direitos humanos”. (Aos membros da Comissão Teológica Internacional, 5-XII-83). “É preciso afirmar e pôr à vista a união entre os direitos do homem e a caridade da nova lei” (id.). É que num ambiente sociocultural ideologizado, é preciso situar o ministério da caridade, a Cáritas, “no centro da própria revelação divina; no coração da mensagem messiânica de Jesus; no vértice da missão da Igreja; nos fundamentos da possibilidade e realidade da renovação procurada pelo Concílio Vaticano II…; e igualmente na vizinhança, na proximidade do homem do nosso tempo, de todos os marginalizados e oprimidos pela injustiça…; o mais íntimo da luta pela justiça encontra na misericórdia cristã… a sua mais perfeita expressão e a garantia da sua verdade”. (J. Losada: La encíclica de Juan Pablo II, Dives in misericórdia. Una lectura desde Cáritas, en Coríntios XIII nº 21, 1982) (Coríntios XIII, nº 33, enero-marzo 1985, “Manual Teológico de Caritas”, Presentación).

            Uma Igreja que, como o Senhor, se compadece do homem, é uma Igreja que compreendeu a revelação que Deus nos fez da dignidade do homem. Por isso “simpatiza” e “empatiza” com o pobre, quer dizer, com aquele a quem o mundo, marcado pelo pecado, nega sistematicamente o exercício real dos seus direitos fundamentais, seja no Ocidente, seja no Oriente. Uma Igreja compassiva leva no coração, não só de cada cristão, não só da Cáritas, mas sim na sua própria vida e na totalidade das suas actividades, o objectivo de salvar a dignidade de todo o homem. Por isso se fixa particularmente nos pobres e marginalizados. João XXIII propôs-se reabilitar o homem e o Concílio serviu-lhe para alcançar este objectivo. Para a “Gaudium et Spes”, “a pessoa humana, saída das mãos do Criador, salvada pelo Redentor dos seus erros e das suas faltas, tem uma dignidade maravilhosa. Conhecer a verdade, querer o bem, construir e humanizar o cosmos, engendrar vidas no amor conjugal, criar culturas, civilizações, poderes políticos, técnicos, artes, é a sublime vocação da criatura e da humanidade quando esta se confia a Cristo. Nesta perspectiva, reconhecer os direitos fundamentais e essenciais de todos os homens é, simplesmente, ver neles filhos de Deus. Homens autênticos, seres capazes de assumir as suas próprias responsabilidades”. (Comissão Teológica Internacional: “Les chrétiens d’aujourd’hui devant la dignité e les droits de la personne humaine”. Pontifícia Comissão de Iustitia et Pax – Vaticano, 1985).

            A Igreja, a Cáritas enquanto comunidade dos crentes quando se solidarizam com os pobres e marginalizados, tem de viver, se é fiel ao Evangelho, em permanente compaixão com os que sofrem na sua dignidade de seres humanos, quer dizer, tem que chorar com o que chora, ser pobre com os pobres, tem de identificar-se com as humilhações dos humilhados, tem de gritar com os que gritam a sua dor. Mas isso não a pode impedir de pôr em comum o pouco que tenha para que, pela bênção de Jesus – como no milagre da multiplicação dos pães e dos peixes -, todos se saciem, demonstrando que Deus quer que os bens deste mundo sejam desfrutados por todos e não só por alguns poucos, e demonstrando que a Igreja não é chamada a resolver os problemas da pobreza com o dinheiro, como queriam os Apóstolos, mas sim partilhando o pouco que tem e compadecendo-se da multidão faminta sem abandoná-la à sua sorte, como também queriam os Apóstolos. A Igreja, Cáritas, tem de evangelizar activamente uma caridade real que transforme o “eu” em “nós” e o “nós” eclesial em “nós” universal centrado prioritariamente nos pobres e marginalizados. A Igreja, Cáritas, tem que assumir até à morte, e morte de cruz se preciso for, o compromisso pela justiça como parte essencial, inseparável, do ministério da caridade.

            Diante da gravidade das situações de pobreza, diante da dimensão da miséria, diante da gravidade dos problemas de marginalização, nem o mundo nem os próprios necessitados podem compreender que seja autêntico um amor que, tendo a mesma fonte para todos os cristãos, as mesmas características e exigências, os mesmos objectivos e idênticas finalidades, apareça disperso na sua realização, fracturado na sua necessária unidade, esquartejado numa série enorme de instituições que dizem ser uma só comunidade cristã, dividido em acções muitas vezes idênticas e que recaem sobre os mesmos beneficiários, protagonizado por diversas associações que se afirmam pertencer à mesma Igreja. Não é fácil compreender que os que têm como sinal específico o amor mútuo e o amor aos inimigos e aos necessitados; os que têm uma só esperança, um só Senhor, uma só fé, um só baptismo, um só Deus e Pai de todos (Cfr. Ef. 4, 4-6), apareçam divididos, alheios uns aos outros, em desacordo teórico e prático, quando se trata de ajudar os mesmos homens que por causa da sua situação de pobreza são para nós “sacramento de Cristo”. Dito de outro modo, um amor que não procura por todos os meios o máximo bem das pessoas amadas, que não procura a máxima eficácia, não para o bem próprio, mas sim para o bem das pessoas amadas, dificilmente será entendido como verdadeiro amor ou, melhor, dificilmente será um verdadeiro amor.

            Diante da tremenda magnitude dos problemas da pobreza, um amor verdadeiro exige o sacrifício dos interesses meramente pessoais, da auto-satisfação da obra própria, de toda a procura de prestígio institucional, de toda a forma de protagonismo, em favor de alguns seres humanos que de tudo necessitam. E isso é particularmente urgente quando a totalidade de recursos de todo o tipo que a comunidade cristã põe em comum com os necessitados representa uma quantia de todo insuficiente, já não para acabar com a pobreza, mas ao menos para simplesmente a suavizar. É particularmente urgente quando temos de unir todas as nossas vozes para fazer uma denúncia profética de todos os sistemas vigentes e temos de unir todos os nossos esforços para erguer uma sociedade mais justa e solidária.

            Dificilmente poderemos levantar as nossas cabeças com alegria quando o Senhor nos examine sobre o amor no final dos tempos se, tendo-o encontrado com fome, sem casa, com sede, nu, toxicodependente, doente, na prisão, sendo estrangeiro marginalizado de mil maneiras, não fomos capazes de amá-lo até ao fim, procurando o seu bem total, por razões de natureza jurídica, institucional, associativa ou de qualquer outro tipo, que nada têm a ver com um verdadeiro amor. O escândalo do “capitalismo” e da dispersão de esforços em detrimento do Jesus que sofre no necessitado; o escândalo de uma ineficácia do amor por razões de prestígio ou de um amor-próprio associativo ou institucional; o escândalo de não dar tudo o que somos e possuímos na procura do maior bem possível em favor dos necessitados, constituirá sempre um pecado de acção ou de omissão contra as exigências inadiáveis de um amor aos marginalizados que tem de ser expressão do nosso amor ao próximo, expressão por sua vez do necessário amor a Deus.

            A Igreja, através da Conferência Episcopal Espanhola, quis que a Cáritas fosse o instrumento para levar a cabo essa coordenação. Instituída pela Conferência Episcopal Espanhola e por cada Diocese no seu território, a Cáritas tem por objecto promover e coordenar a comunicação cristã de bens em todas as suas formas e ajudar à promoção humana e ao desenvolvimento integral de todos os homens (cfr. 10 e 34 dos Estatutos).

            Os Estatutos vigentes apresentam não só umas funções e uns objectivos próprios da Cáritas, mas sobretudo um determinado modo de ser Cáritas. Não é uma associação de acção caritativa e social. Tão pouco é uma espécie de estrutura directiva que se impõe regulamentarmente à enorme variedade de entidades associativas de índole sociocaritativa que existem na Igreja em Espanha ou em cada Igreja diocesana. Também não é uma instituição que, com pretensões de ser melhor do que as outras, entra em concorrência com o resto das instituições de acção caritativa e social da Igreja. Muito menos é algo assim como que um monopólio oficial da acção social e caritativa da Igreja. Tão pouco é uma associação exclusivamente aberta a determinados cristãos que, de acordo com uma espiritualidade particular, livremente se incorporam num estilo concreto de realizar a acção caritativa e social. De modo algum a Cáritas se pode converter numa equipa fechada de cristãos que se apropriam indefinidamente da instituição, impondo a sua forma peculiar de entender a Igreja, o testemunho e a própria acção social e caritativa.

            Os Estatutos vigentes, que quiseram defini-la, dizem-nos que a Cáritas se identifica com todo o Povo de Deus, realizando a acção caritativa e social, e que por isso mesmo se constitui em diaconia da comunidade para a realização da acção caritativa e social da Igreja, incorporando no seu próprio ser todas aquelas pessoas e entidades que devem levar a cabo essa acção, não em nome próprio, como simples organizações aconfeccionais, mas sim em nome da própria Igreja.

            A afirmação é, pois, determinante. Se a Cáritas não é capaz de colocar-se a si mesma como a diaconia, o serviço, de toda a comunidade cristã, coordenando respeitosamente no seu seio todos os esforços institucionais que têm o desejo de aparecer e de ser como da Igreja, e se se auto-define como um organismo que (sozinha e à margem dos diferentes esforços sociocaritativos, pessoais e associativos, que os cristãos realizam) deseja protagonizar o testemunho eclesial do amor e a solidariedade com os marginalizados, está atraiçoando a sua vocação essencial e teria que propor-se, seriamente, ou converter-se e encontrar a sua verdadeira natureza, ou desaparecer.

            A propósito da coordenação na Igreja, João Paulo II disse no seu discurso à XII Assembleia da Caritas Internationalis: “ Há que situar os esforços da Cáritas no quadro da Pastoral Social da Igreja, e a escolha do tema da nossa Assembleia, Realidade e Futuro da Pastoral Social, permitiu-vos, creio, aprofundar este aspecto. Esta Pastoral social inclui muitos sectores, obras e serviços, leva a diferentes compromissos por parte dos leigos, dos que estão organizados em movimentos e dos que não estão, e também por parte de religiosos e religiosas que têm a seu cargo obras sociais; a título especial, estão interessados também os sacerdotes e, evidentemente, os diáconos. A nível diocesano, é o Bispo quem coordena esta Pastoral Social, como tudo o que é Apostolado, como recorda o Decreto Christus Dominus. Sem o seu acordo não se poderiam tomar as múltiplas iniciativas na base. A Cáritas participa com ele, entre outras coisas, nessa tarefa, mas com um carisma particular, para recordar o lugar primordial da caridade, para despertar a consciência dos cristãos e dos não cristãos, ajudando a descobrir as exigências do amor diante das multiformes necessidades do próximo, ajudando a suscitar uma eficaz vontade mútua e ajudando a coordenar estes esforços” (nº 3, cit. Em Corintios XIII nº 3, “Cáritas International”, 1984, pp. 237-242).

            Mas para que seja possível à Cáritas coordenar a caridade numa Diocese, terá que ter em conta com toda a seriedade o que hoje esse ministério da caridade exige no interior da missão evangelizadora da Igreja. O ministério da caridade da Igreja tem que responder directamente ao ministério de Jesus.

            O que Jesus oferecia, pelas suas palavras e actos, especialmente pela sua crucifixão que dá lugar à sua ressurreição, era o desmantelamento de toda a consciência de poder, de egoísmo, de prepotência, que vitimava os pequenos, os pobres, os marginalizados. Mas o que Jesus oferecia e o que constituía o próprio centro da sua obra não era um simples desmantelamento, mas sim a inauguração de uma nova mentalidade.

            O ministério de Jesus é, desde logo, o factor dinamizador que deu lugar a mudanças radicais precisamente quando nenhuma mudança desse tipo parecia possível.

            O que as pessoas percebiam era que a vida se tinha transformado de um modo estranho e inexplicável, e que essa transformação não se tinha dado por meios normais, ao mesmo tempo que os resultados dos meios usados por Jesus violavam a racionalidade: os seus meios e os seus fins eram um escândalo (amor aos inimigos; perdão à adúltera ou à Madalena; “as prostitutas hão-de preceder-vos nos céus…”; o publicano e o fariseu; “é mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha…”; “bem-aventurados os pobres…, os que choram…, os pacíficos…”; etc.). A mudança acontecia de uma forma que não era susceptível de ser legitimada pelo sistema político e que não se enquadrava nos parâmetros das técnicas de administração.

            Todo o movimento de Jesus se resume com uma simplicidade incrível: “Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Lc. 7,22).

            Todos conhecemos a reacção: Jesus é acusado de bebedor, de estar endemoninhado, de louco…, e acaba morto na cruz.

            Mas houve outros, aqueles a partir dos quais e para os quais era a Boa Notícia e a sua assombrosa novidade: estes ficam pasmados (Mc 1,27), maravilhados (Mc 4,41; 6,2), espantados (Lc. 5,26), atónitos (Lc 9,43), etc.

            Jesus de Nazaré, um profeta e mais do que um profeta, pôs em pratica da maneira mais radial os principais elementos do ministério caritativo e da imaginação profética. Por um lado, exerceu a crítica do mundo de morte que o rodeava. Além disso, curou os doentes, deu de comer aos famintos e perdoou aos pecadores. O desmantelamento total e definitivo deu-se definitivamente na sua crucifixão, na qual Ele próprio encarnou a compaixão, a partilha de tudo o que se é e se possui, e a própria realidade desmantelada. Por outro lado, levou a cabo a dinamização do novo futuro outorgado por Deus, algo que aconteceu em plenitude na sua ressurreição, na qual ele próprio encarnou esse novo futuro.

            Concretizemos agora um pouco mais. O ministério caritativo, como o profético, não consiste em empreender acções espectaculares de “cruzada social”, nem em realizar gestos de visível indignação para sair na televisão e nos jornais. Consiste, sim, em oferecer como Boa Nova, da parte de Jesus, da parte de Deus, um modo alternativo de perceber a realidade e de ajudar as pessoas a olharem a sua própria história à luz da liberdade de Deus e seu desejo de justiça, coisas que nem sempre são visíveis nem têm que ser explícitas. Mas que podem e devem ser discernidas lá onde as pessoas vivem umas com as outras e se preocupam com o seu futuro e a sua identidade (pensemos nas grandes manifestações encabeçadas pelos líderes de todos os partidos, enquanto alguns milhares de pessoas pobres dos subúrbios se interrogam sobre o que comerão ao jantar).

            Tiremos, pois, conclusões sobre o modo como tem que colocar-se hoje uma caridade coordenada pela Cáritas:

  1. O “que fazer” do ministério da caridade e do ministério profético consiste em suscitar uma comunidade alternativa consciente de estar a fazer coisas diferentes e de modo diferente dos poderosos do mundo: os políticos, os sindicalistas, os gestores, os ricos, os economistas, os do 4º Poder, os ideólogos e intelectuais… Essa comunidade alternativa deverá ter relações de diversa índole com a comunidade dominante, mas nunca deixar-se colonizar por ela.
  2. A prática do ministério caritativo, como do profético, não é algo de tangível, que se possa realizar em dois dias duma semana. Ao contrário, realiza-se em todos e cada um dos actos do ministério, na orientação espiritual dos cristãos, na predicação, na liturgia, na oração, na educação, no compromisso, na evangelização dos ambientes, na partilha de bens… Tem muito a ver com uma atitude, um modo de estar, uma hermenêutica em relação ao mundo de morte e à palavra de vida, e deve manifestar-se e expressar-se abertamente em qualquer contexto eclesial e social.
  3. A prática do ministério caritativo co-participa voluntária e profundamente o sofrimento como um modo de deixar-se penetrar pela realidade.
  4. O ministério da caridade, como o profético, inseparável daquele, tem que incidir também profundamente sobre o desespero e a desesperança, para que possamos crer nos novos factores que se nos oferecem em Jesus e para que sejamos capazes de os assumir. Num mundo como aquele em que vivemos, fatigado, enfastiado, desiludido de tudo, existe uma real ânsia de dinamismo. E sabemos certamente que a única acção capaz de dinamizar é uma palavra, um gesto, um acto, cheios de amor, que revela que quem os realiza crê no nosso futuro e nos confirma isso desinteressadamente.
  5. O ministério da caridade, como o profético, tem de tentar consciencializar o Povo de Deus e todos os homens de boa vontade, não só para a necessidade de partilhar o que se é e o que se tem, quer dizer, não só para a necessidade de realizar uma Comunicação cristã de Bens, mas também e sobretudo para a felicidade que há na construção do reino de Deus através de gestos simbólicos significativos que ofereçam à nossa sociedade caminhos para que a paz triunfe sobre a violência da palavra, do pensamento e da obra; para que a justiça acabe com toda a forma de injustiça tal como existe na economia, no trabalho, no mundo social, no desporto, na política, até na própria Igreja, na família…; para que construamos entre todos uma civilização do amor (João Paulo II) face a uma sociedade e uma humanidade nas quais reina o ódio, a vingança, o egoísmo, os mil imperialismos (grandes e pequenos), a adoração do consumo e do bem-estar fechado em si mesmo, a sexualidade como alienação, um pragmatismo egoísta que não respeita nem a vida própria (drogas, álcool, suicídios…) nem a dos outros (aborto, eutanásia, pena de morte desejada por tantos, terrorismo em todas as suas formas…); para que a liberdade se imponha sobre as mil formas de exploração do homem, de alienação, de opressão…; para que a verdade torne livres os homens tantas vezes submergidos no erro, na mentira, na insinceridade, na hipocrisia…, alimentadas por tantas manipulações que existem nas relações sociais e nos meios de comunicação social.
  6. O ministério da caridade, como o profético, tem que colocar-se sempre dentro destas coordenadas:
    1. Primazia do opcional: o assistencial ou o conforto do que sofre nunca devem fechar as portas ao promocional.
    2. Dimensão educativa: as nossas acções devem criar consciência e esperança, ajudando a descobrir as causas da pobreza, substituindo a resignação fatalista pela esperança activa, criando valores novos fundados na solidariedade e na fraternidade.
    3. Dimensão eclesial: unidos a todos os homens de boa vontade, devemos actuar de forma que os marginalizados se sintam amados pela comunidade cristã, pela Igreja, e não por um ou outro cristão de boa vontade.

Há uma tarefa para fazer hoje, um tarefa de amor, de simpatia, de empatia com os pobres, pecadores e marginalizados, uma tarefa em que temos que partilhar o que somos e o que temos, uma tarefa dolorosa, para que chegue o futuro. Há que chorar inclusive por aqueles pecadores que não estão conscientes do carácter perecedoiro da sua situação. Há que afligir-se e chorar por aqueles que experimentam a dor e o sofrimento e nem sequer têm possibilidade de o mostrar. As palavras de Jesus são duras, porque estabelecem esta tarefa penosa como condição necessária para aceder ao gozo; porque anunciam que aqueles que não quiseram afligir-se com a situação de morte que o mundo vive não conhecerão o júbilo.

O que não chora e não se aflige pela ordem presente não pode realizar o ministério caritativo nem o profético. Talvez não tenha fé porque não tem olhos para descobrir o homem que sofre, o pobre, o explorado, o tratado injustamente, o condenado como pecador (quando o próprio Deus não condena ninguém enquanto vive), o marginalizado, o apanhado em estruturas políticas, sociais, económicas, jurídicas, laborais que não lhe reconhecem a sua dignidade nem lhe permitem exercer os seus direitos fundamentais por mais que a sociedade se presuma de democrática. Não podemos esquecer a parábola do Juízo Final (Mt. 25).

Mas o pranto e a aflição constituem também uma condição prévia noutro sentido. Não se trata de uma exigência formal mas, ao contrário, trata-se da única porta aberta e do único caminho para a felicidade. Vista neste contexto, a expressão de Jesus “Bem-aventurados os que choram”, não é apenas uma frase engenhosa, mas um compêndio de toda a teologia da cruz. Só este tipo de desprendimento doloroso, de solidariedade, de entrega no compromisso, de dar sem condições, de profunda denúncia profética, permite que o desejo se torne realidade, e só a aceitação clara da finitude e da mortalidade torna possível a aurora da novidade. É preciso que as nossas comunidades aprendam a chorar com os que choram e que aprendam a compreender que Deus se aflige de formas por nós desconhecidas e que, para se regozijar, apenas espera o momento em que as suas promessas se cumpram plenamente.

* * *

            É por este caminho que o ministério da caridade na Igreja tem que ir, indissoluvelmente unido ao ministério profético, à oração e à celebração da ceia do Senhor, uma caridade devidamente coordenada no seio de uma Pastoral de Conjunto plenamente diocesana. O contrário seria converter a Cáritas, ou a própria Igreja, numa espécie de Cruz Vermelha (com todo o respeito), na Liga Contra o Cancro (também com todo o respeito), ou numa “sociedade protectora dos animais”…

            Se alguém possui bens na terra e vê o seu irmão a sofrer necessidades e lhe fecha o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? Meus filhos, não nos amemos com palavras saídas da boca, mas com obras e segundo a verdade (1 Jo 3,17-18).

            Acabo com estas palavras do Papa, na sua Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis”: “Maria santíssima, nossa Mãe e Rainha, é a que, dirigindo-se ao seu Filho, diz: «não têm vinho» (Jo. 2,3) e é também a que louva a Deus Pai, porque «derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu sem nada» (Lc. 1,52 ss)”.

            Não é Maria um estupendo exemplo de solidariedade social e caritativa e de perfil profético, num mundo mergulhado no alheamento e na injustiça?

            Vale a pena pormo-nos nas mãos do Senhor através da sua intercessão, para que sejamos capazes de realizar a “revolução do amor” que o nosso mundo espera, e que os que morrem na miséria possam descobrir o rosto de Cristo presente no seu rosto de moribundos.


Zaragoza, 25 de Abril de 1988


(*) – Na altura da publicação deste artigo, D. Echarren era Bispo das Canárias (de que hoje é Bispo emérito) e Presidente da Comissão Episcopal de Pastoral Social.


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