D. João Saraiva sobre a Cáritas, em 1973
Visão da Cáritas no início da década de 70, em Nota Pastoral do Bispo de Coimbra D. João Saraiva (1973)
NOTA PASTORAL
Dia Nacional de Caridade
Sinal de unidade e vínculo de caridade
A Festa do Corpo de Deus, em que a Igreja proclama as maravilhas realizadas pelo Senhor no Ministério Eucarístico, foi escolhida pelo Episcopado Português para nela se celebrar o «Dia Nacional de Caridade».
Sem dúvida, esta solenidade litúrgica oferece‑nos uma bela oportunidade para lembrar a todos os cristãos os ensinamentos do Senhor sobre a caridade, para lhes inculcar o dever de a traduzirem por obras, e para os estimular a que canalizem a sua acção caritativa através da Cáritas, de modo a inserir‑se na missão salvífica da Igreja.
A Eucaristia é, com efeito, a grande fonte de amor fraterno, donde flui toda a actividade apostólica da Igreja, donde tiram a sua força todos os movimentos empenhados em dar testemunho permanente da caridade de Cristo.
Expressão suprema do amor de Deus, que, segundo S.to Agostinho, não podia ir mais longe no Seu esforço de aproximação do homem, a Eucaristia é também a mais poderosa força unitiva, pois nos introduz numa comunidade de amor sem fronteiras, da qual nenhum homem se deve sentir excluído, por culpa nossa.
Renovando, misteriosamente, o Sacrifício, pelo qual o Senhor Jesus Se imolou na Cruz, para nos libertar das nossas mais radicais escravidões e nos reconciliar com o Pai, ela une‑nos ao Corpo de Cristo e de todos os redimidos, constitui um só Povo, suprimindo as barreiras que separam o homem.
«Memorial da Morte e Ressurreição do Senhor», a Eucaristia é o mistério que ilumina todos os homens e realiza a unidade da Igreja, a qual, «até que Ele volte», terá por missão sanar todas as divisões, causadas pelo pecado e pelo mal.
Da Eucaristia ao serviço dos irmãos
A celebração eucarística, em que palpita o anseio vivíssimo do Senhor de reunir todos os homens na mesma Família dos filhos de Deus, tem, naturalmente, de impelir «os fiéis, saciados pelos mistérios pascais, a viverem unidos no amor» (Decreto sobre a Sagrada Liturgia, n.° 10).
Assim o têm compreendido os cristãos, através dos tempos. Na verdade, logo desde o início (Act. 6, 1‑6), o serviço da caridade e a assistência fraterna nos aparecem ligados à Eucaristia, como sua projecção natural.
Para os primeiros cristãos, compenetrados como estavam das exigências do Mistério Eucarístico, a celebração eucarística não era apenas um acto individual de piedade e devoção; era um acto social, que os levava a estreitar os laços de amor entre todos os homens e a pôr em prática uma verdadeira comunicação de bens entre pessoas e entre comunidades.
As comunidades eucarísticas tornaram‑se assim comunidades de caridade, nas quais os fiéis prolongavam, no tempo e no espaço, a acção de Cristo, enviado pelo Pai, para «evangelizar os pobres e levantar os oprimidos» (Luc. 4, 18), «para buscar e salvar o que estava perdido» (Luc. 19, 10).
Esta caridade comunitária, que não se exerce em nome próprio, mas é uma acção eclesial, num verdadeiro testemunho oferecido pela Igreja, é essencial na vida do Povo de Deus (Cfr. I Cor.; II Cor.; Fil; Gal.; Rom. etc.).
Por isso a Igreja, para a promover com eficácia, procurou sempre, no decorrer dos tempos, encontrar os instrumentos necessários e também os mais adaptados às necessidades de cada época.
Cáritas, organismo oficial da Igreja
Surgida ao calor da Eucaristia, em Julho de 1924, por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional de Amesterdam, a Cáritas é no nosso tempo, o instrumento de que a Igreja se serve para pôr em movimento essa corrente de amor, que brota de Cristo e termina no mesmo Cristo, vivo, «sacramentalmente», no necessitado (Mat. 25. 40).
Assim como, nos primeiros tempos, a Igreja confiou aos diáconos a assistência a toda a classe de necessitados (Act. 6, 1‑6), assim hoje confia à Cáritas a missão de tornar efectiva a comunhão de bens, espirituais e materiais, entre os homens, a fim de que a comunidade cristã surja como um sinal de amor, no nosso século.
A Cáritas é, portanto, o organismo oficial da Igreja, para promover, orientar e coordenar toda a acção caritativa e social da mesma Igreja.
Do mesmo modo que a piedade litúrgica e comunitária não exclui, nem suprime a piedade particular, mas a alimenta e robustece, também a Cáritas não dispensa, nem absorve a actividade caritativa individual ou das instituições. Pelo contrário: a Cáritas anima‑as e estimula‑as, difundindo o espírito de justiça social e de caridade entre indivíduos e instituições. A Cáritas colabora com todos os esforços para uma verdadeira promoção humana, para um desenvolvimento integral de todos os homens.
Esta missão eminentemente pedagógica da Cáritas , é primordial e da maior importância na pastoral da caridade. A Cáritas, porém, não se pode limitar a transformar as mentalidades. Quando é necessário, procura ela própria soluções conformes com a justiça e a dignidade da pessoa humana, planeia e programa iniciativas, tendentes a remediar os problemas mais urgentes, cria obras concretas de assistência, de solidariedade e de permuta de bens.
Numa sociedade em que a eficiência é tão apreciada, o serviço da caridade tem também que se revelar eficiente. Por isso, a Cáritas, sem se confundir com qualquer empresa técnica ou humanitária, utiliza as modernas técnicas sociais, graças às quais poderá, mais facilmente, descobrir, analisar e remediar as mais diversas necessidades humanas: de alimento, de habitação, de cultura, de compreensão, de amizade ou quaisquer outras.
A Cáritas representa, pois, uma resposta da Igreja aos problemas do homem do nosso tempo, através duma organização tanto quanto possível perfeita e actual.
«Olhos vigilantes, mão generosa e coração aberto a todas as necessidades»
Pela sua estrutura, a Cáritas está presente na paróquia, mas sem deixar de estar aberta ao mundo, fiel a uma das características da verdadeira caridade, que é a universalidade. Por isso através das suas múltiplas actividades, a Cáritas está em toda a parte, para construir um mundo fraternal, levando os homens, pela vivência da caridade, a uma justiça cada vez mais exigente.
E onde está a Cáritas, ai está a Igreja, a cumprir um dos três ministérios que lhe foram confiados pelo Senhor — o «real», o de servir os homens, especialmente aqueles pelos quais o Senhor prodigalizou o Seu amor, a saber, os mais necessitados, espiritual ou materialmente.
A Cáritas deve, portanto, interessar, deve comprometer todos os cristãos. Todos somos chamados a colaborar com ela, certos de que, hoje em dia, não basta praticarmos uma caridade a título pessoal e de maneira esporádica, mas se impõe uma caridade organizada.
Neste sentido, o próximo «Dia Nacional de Caridade» não deve reduzir‑se a uma simples recolha de donativos materiais, de que, sem dúvida, a Cáritas precisa. Antes de tudo, deve ser uma chamada à consciência de todos os cristãos.
E a interpelação que a todos deve ser feita é esta: estamos dispostos a viver as exigências sociais da nossa Fé? Estamos convencidos de que a novos tempos e a novas necessidades devem corresponder novas modalidades de caridade, adaptadas à época em que vivemos?
A Cáritas tem vindo a fazer um esforço muito grande para se estruturar em toda a Diocese: Tem sido um trabalho persistente, planeado com visão e com conhecimento das realidades e executado com entusiasmo. A Comissão Diocesana da Cáritas e todos aqueles que de «olhos vigilantes, mão generosa e coração aberto a todas as necessidades» (Paulo VI, à Cáritas Internacional, em 12‑5‑72), com ela têm colaborado, merecem a gratidão da Igreja Diocesana.
É necessário, porém, que este esforço seja corroborado por todos, a fim de que a Cáritas se desenvolva em toda a Diocese e se estabeleça em todas as Paróquias, até se tornar uma organização viva, operante e eficaz.
Coimbra, 3 de Junho de 1973
+ JOÃO, Bispo de Coimbra
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