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A Igreja Samaritana entre o esplendor da verdade e a caridade na verdade

1. A celebração de mais um dia da Cáritas reveste-se particular significado e importância. Abrangendo 162 organizações humanitárias da Igreja Católica e atuando em mais de duzentos países desde as Américas à Oceânia, a primitiva Cáritas foi criada em Friburgo (Alemanha) em 1897 com o fim de trabalhar para construir um mundo melhor na defesa e ajuda dos pobres e oprimidos. Depois outras organizações nacionais viriam a ser instituídas na Suíça (1901) e nos Estados Unidos (Cáritas 1910).


Depois de algumas inovações, no ano santo de 1950 teve início a União de organizações da Cáritas. Seguindo uma sugestão do Monsenhor Montini, então Secretário substituto de Estado do Vaticano, e posteriormente, já como Papa Paulo VI, realizou-se em Roma uma semana de estudo, com participantes de 22 países, para examinar os problemas do trabalho cristão da Cáritas. Tomou-se nessa altura a decisão de criar uma conferência internacional de organizações católicas de caridade.


A primeira Assembleia Geral constitutiva da atual Cáritas Internacional realizou-se em Dezembro de 1951, após a aprovação dos estatutos pela Santa Sé. Os membros fundadores pertenciam a organizações da Cáritas de 13 países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Luxemburgo, Portugal e Suíça. “Caritas Internationalis” foi o nome adotado em 1957 e hoje a confederação é uma das maiores organizações humanitárias do mundo.


Orienta a Confederação a doutrina social da Igreja a qual de acordo com os imperativos da solidariedade procura dar resposta às situações mais graves de pobreza, exclusão social e situações de emergência em resultado de catástrofes naturais ou calamidade pública.
No livro “Accanto a Giovanni Paolo II. Gli amici e i collaboratori raccontano” con un contributo exclusivo do Papa emérito Bento XVI, que foi preparado por Wlodzimierz Redzioch (Milão, 2014) encontramos no contributo de Ratzinger uma panorâmica interessante das encíclicas do Papa Polaco em que praticamente em todas elas descobrimos a ideia de fraternidade entre todos os homens numa dimensão cristã que não exclui a humanidade. Na análise que faz da encíclica “Splendor veritatis” chama a atenção deste importante documento que fornece dados muito válidos sobre a justiça social e a sua ligação à verdade. O próprio Bento XVI na “Caritas in veritate” salienta o papel da verdade na prática da caridade. O atual Papa Francisco tem sido um profeta da solidariedade e do encontro dos povos contra a hegemonia da indiferença tão claramente expostos na “Evangelii gaudium”.


2. Bispos não faltaram no Vaticano II que pugnaram pela Igreja dos pobres na linha do muito que já antes do Concílio vinha sendo feito. Na radiomensagem de 11 de Setembro de 1962, um mês antes da abertura do Concílio, João XXIII disse: «Para os países subdesenvolvidos a Igreja apresenta-se como é e como quer ser, como Igreja de todos, e em particular como a Igreja dos pobres». Estas palavras serviram de inspiração de um grupo de padres conciliares. O texto fundamental foi a intervenção de Lercaro, arcebispo de Bolonha, na XXXV congregação geral de 6 de Dezembro de 1962, o que não era muito do agrado do episcopado italiano. Figura de destaque foi Paul Gauthier, autor de “Consolez mon peuple. Le Concile et l’Église des pauvres”, com textos de Mourroux e Congar (Paris, 1965). As raízes espirituais remontam ao séc. XIX e, mais tarde, aos padres operários que em 1944 obtiveram a aprovação do card. Suhard, que depois foi anulada pelo Vaticano em 1953. De referir ainda “Les Compagnos de Jésus”, na terminologia de H. Fesquet, movimento nascido na Palestina sob a direcção da Igreja melquita e do patriarca Máximos IV. Também é de lembrar o que se passava entre os povos do Terceiro Mundo com os seus múltiplos problemas. A essas gentes esquecidas por esse mundo fora, chamou Gómez de Arteche “Grupos “extra aulam”. Salientaram-se ainda no Vaticano II Hélder Câmara, Mercier (dos Missionários de África, bispo de Laghouat, Saará argelino) que falou de uma “Bandung cristã”. De referir igualmente os bispos provenientes dos países socialistas que enfrentavam a ideologia marxista que apresentava o capitalismo como opressão dos povos. O grupo tinha também em mente os oprimidos da Europa industrializada. Hakim, arcebispo de Akka-Nazaré, que estimulou a redação de um primeiro texto por Gauthier, “Les pauvres, Jésus et l’Église”. Havia a separação entre a Igreja e o mundo dos pobres. A 26 de Outubro, reuniu-se no colégio belga aquele grupo com Himmer e Hakim, presidindo Gerlier, arcebispo de Lião, que disse: «O dever da Igreja, na época em que nos encontramos, é de adaptar-se do modo mais sensível à situação criada pelo sofrimento de tantos homens e da ilusão, que certas aparências favorecem, tendente a fazer crer que a Igreja não teria a preocupação dominante…».


Grande impacto teve a nota elaborada por Mercier sobre vários aspetos relacionados com a fidelidade da Igreja ao Evangelho e à Revelação no patriarca Máximos IV Saigh, o qual disse, servindo-se de João XXIII: «A Igreja e os pobres: deve antes de mais fazer-se alguma coisa para que a Igreja seja de facto a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos Pobres. (…) A pobreza é uma questão de vida ou de morte para a Igreja».


Foi proposta a criação de um secretariado ou uma comissão especial para o exercício da justiça pessoal e social, em especial para com os povos em via de desenvolvimento, da paz e da unidade da família humana, da evangelização dos pobres (…). O Papa João XXIII, já doente, não pôde receber mas apoiou a ideia. O grupo não conseguiu um estatuto oficial mas obteve de João XXIII e de Paulo VI todo o apoio. O grupo sentiu-se marginalizado no Concílio e mesmo o pedido de Paulo VI a Lercaro de fazer propostas concretas não obteve êxito.

3. Com a publicação do livro “Pobre para os pobres – A missão da Igreja”, com textos do card. Müller, do padre dominicano Gustavo Gutiérrez, fundador da teologia da libertação, e do teólogo Josef Sayer, com prefácio do Papa Francisco, foi definitiva e solenemente sancionada a teologia da libertação. Na apresentação participaram ainda o card. Rodriguez Maradiaga, coordenador do conselho de cardeais (G8) encarregado da reforma da Cúria, e o director da Sala de Imprensa vaticana, padre Lombardi.


Como foi dito na altura, as polémicas, pelo menos oficialmente, passaram à história. Gutiérrez, agora com 85 anos, nunca teria pensado que chegaria essa hora. A conferência episcopal alemã promove o programa “Misereor” em que entra o Peru. A grande amizade entre ambos refletiu-se também numa publicação das Edições do Mensageiro de Pádua escrito a quatro mãos com o título: “Do lado dos pobres. Teologia da libertação, teologia da Igreja” (Pádua-Bolonha, 2013).


Sem Gutiérrez e a sua teologia da libertação, disse Maradiaga, Müller não teria nunca partilhado na vida de laboriosos campesinos da região de Cuzco, nem – como salientou o ex-presidente de “Misereor”, o teólogo Joseph Sayer – nunca teria «dormido no pavimento de terra nas pobres casas de barro dos agricultores sobre uma pele de alpaca, devendo suportar o fastídio das pulgas e dos porquinhos-da-índia».
Para Maradiaga o primeiro violino é o Papa Francisco. Maradiaga que lecionou música durante 13 anos, definiu “Pobre para os pobres” como uma verdadeira sinfonia, com diversos solistas «de grande solidez teológica e humana». O primeiro violino «que dá o lá» é o Papa Francisco, que no prefácio recorda que o dinheiro por si «é um instrumento bom, é um meio que alarga as nossas possibilidades, que de algum modo prolonga e aumenta as capacidades da liberdade humana, permitindo-lhes operar no mundo, de agir, de dar fruto». Todavia «dinheiro e poder económico podem ser um meio que separa as pessoas, confinando-as num horizonte egocêntrico e egoístico». A opção pelos pobres é um facto de coração, de experiência, mais do que uma questão de estudo dos livros.


Gutiérrez evidenciou a necessidade e o significado de uma Igreja “samaritana”. O teólogo peruano propôs uma releitura da parábola do bom Samaritano. É a parábola do ‘próximo’, que nos consente conhecer plenamente o documento da Aparecida de 2007. O próximo é aquele de quem nos aproximamos para lhe levar ajuda. Não é o vizinho, mas aquele a quem nos dirigimos, depois de abandonar o nosso caminho. ‘Próximo’ implica ‘fazer-se próximo’. A Igreja tem de sair para encontrar as pessoas. A Igreja, lia-se num texto da conferência de Medellin (1968), muitas vezes citado pelo card. argentino Pirónio, deve ser “pobre, missionária e pascal”. Joseph Sayer afirmou: «O que nos impressiona em particular foi o facto de Gutiérrez ter sempre advertido para o perigo de uma romantização da pobreza» quando afinal os pobres são os preferidos de Deus, não porque são bons, mas porque Deus é bom. Deus dá gratuitamente o seu amor sobretudo a quem é negada uma vida digna de ser vivida».
Müller (a quem o presidente da Conferência episcopal quis dar um poncho, vestido depois pelo purpurado alemão) disse que a palavra ‘pobreza’ está ligada particularmente à sua vida pela consciência amadurecida da presença da pobreza – material e espiritual – no mundo. Ainda jovem, Müller alimentou-se em Mogúncia da doutrina social do bispo do séc. XIX von Ketteler (1811-1891) que tanto se empenhou pela questão social antes de Leão XIII.


Em quadra quaresmal e celebrando mais um dia da Cáritas, os textos referidos proporcionam compreender melhor o significado do esplendor da verdade e da caridade na verdade que devem guiar a Igreja samaritana como Povo de Deus.

Manuel Augusto Rodrigues
(Correio de Coimbra, 20 de março de 2014)

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